Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Foi a partir de decisões do Supremo Tribunal Federal e não de lei votadas pelo Congresso Nacional que o cigarro foi proibido em avião, a pesquisa com células-tronco foi liberada, a proibição ao nepotismo foi estendida aos Três Poderes, a distribuição do coquetel contra o vírus da Aids fez-se gratuita, a demarcação de reservas indígenas ganhou novas regras, os servidores públicos tiveram garantido o direito de fazer greve e os partidos tornaram-se detentores dos mandatos de seus eleitos.
A lista de feitos do ativismo judicial é extensa, amplia-se a cada dia e gera um interminável debate sobre suas consequências para o equilíbrio dos Poderes. Ciente de que esse ativismo, que cresceu, em grande parte, na esteira da crise do Legislativo, dificilmente pode vir a ser contido no curto prazo, o deputado Flávio Dino (PCdoB-MA) concluiu que a saída seria dotá-lo de mais legitimidade.
É esse o escopo de sua polêmica proposta de emenda à Constituição, com mudanças nos critérios de composição e permanência dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
A Constituição prevê que os 11 ministros do Supremo sejam escolhidos pelo presidente da República entre brasileiros de 35 e 65 anos, "de notável saber jurídico e reputação ilibada".
A proposta do deputado, que transita com facilidade pela magistratura desde que presidiu a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), amplia para o Legislativo e o Judiciário a possibilidade de nomear seus integrantes.
Essa nomeação partiria obrigatoriamente de listas tríplices apresentadas pelos tribunais superiores de Justiça e Trabalho, Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público, OAB e faculdades de Direito que mantenham programa de doutorado há pelo menos 10 anos. É a esta lista tríplice que Dino atribui o antídoto a que o Supremo venha a replicar o modelo do Tribunal de Contas da União, hoje formado por indicações dos três Poderes.
Tão polêmico quanto o fim do monopólio das indicações do presidente da República é o mandato de 11 anos que a proposta sugere para os ministros.
O fim da vitaliciedade romperia a tradição anglo-saxônica a que se filia o Supremo Tribunal Federal desde sua criação e o aproximaria das cortes européias que, no pós-guerra, adotaram mandatos.
Se a vitaliciedade da Suprema Corte americana foi uma reação aristocrática aos poderes nascentes do Congresso americano, a imposição do mandato na Europa, capitaneado das mudanças trazidas pela convocação soberana do Tribunal de Nuremberg. A emergência do Estados com políticas sociais mais agressivas no pós-guerra ampliou a mediação do Judiciário e reforçou seu poder político.
No Brasil, Dino localiza no período que sucedeu a Constituinte de 1988 o início das mudanças que puseram em xeque a vitaliciedade. Ganhariam maior velocidade a partir de 2003 quando aposentou-se, junto com o último ministro indicado pelos militares, a mentalidade mais formalista na relação com o poder político.
Somado-se ao desgaste crescente de um Congresso obrigado a responder às demandas geradas pela abertura política num ambiente de permanente crise econômica, os novos poderes adquiridos pelo Ministério Público, a ampliação do acesso à justiça e a súmula vinculante trouxeram o Supremo tribunal para o centro da ribalta. Dino não tem dúvidas em afirmar que esta é, de longe, a composição mais ativista da história da Casa.
Esse ativismo foi reforçado pela intensa renovação dos seus quadros. Nenhum presidente da República terá nomeado tantos ministros do Supremo quanto Luiz Inácio Lula da Silva ao final de seu mandato: oito novos nomes. E essa maioria ativista - muito mais facilmente formada entre 11 ministros do que entre 513 deputados - pode vir a se cristalizar por duas ou três décadas.
Uma outra proposta de emenda à Constituição que já está em pauta de votação, de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), propõe a extensão do exercício do cargo de ministro do Supremo dos 70 para os 75 anos. O que significa que um ministro, teoricamente, pode vir ficar até 40 anos no poder, exacerbando o que Dino chama de aristocratização da Corte.
A bandeira da resistência à mudança é a remissão ao modelo americano, que manteve-se incólume mesmo sob momentos de grande pressão, como nos anos 1930 quando Roosevelt, inconformado contra seguidas decisões contrárias ao "New Deal", quis mudar sua composição.
À poderosa Corte americana, no entanto, contrapõe-se a força do Congresso e a vigilância da imprensa que já derrubou candidatos antes mesmos de estes se submeterem ao escrutínio parlamentar. Não há registro, no Congresso Nacional, de uma indicação ao Supremo Tribunal Federal ter sido rejeitada pelo Senado.
Flávio Dino evoca o presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, e sua tese de que o Brasil tem um sistema legislativo tricameral, em defesa da mudança nas regras de composição da Casa. Mendes é o mais novo dos ministros. Indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, deverá ser o ministro a conviver com o maior número de presidentes. Como ainda tem mais 16 anos até a compulsória aos 70 anos, além de FHC e Lula poderá a vir a coabitar com até quatro futuros presidentes.
Mendes não está entre os ministros do Supremo mais simpáticos ao mandato, ainda que a proposta preveja a aplicação das novas regras apenas para os novos ingressantes. A limitação em 11 anos permitiria que um ministro conviva com mais de um presidente e não coincida com sua permanência no poder.
A proposta está longe de conter o ativismo que, capitaneado pelo Supremo, prolifera-se na primeira instância, no Ministério Público e na Polícia Federal e lhes confere ares salvacionistas.
Está na pauta de um Congresso que, votando-a, tampouco readquirirá o protagonismo da ação política. Limita-se a oxigenar a composição de uma Corte que tem legislado sem o voto popular que a legitime. E bem que poderia sacudir o Poder ao lado que, legitimado, não legisla.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Foi a partir de decisões do Supremo Tribunal Federal e não de lei votadas pelo Congresso Nacional que o cigarro foi proibido em avião, a pesquisa com células-tronco foi liberada, a proibição ao nepotismo foi estendida aos Três Poderes, a distribuição do coquetel contra o vírus da Aids fez-se gratuita, a demarcação de reservas indígenas ganhou novas regras, os servidores públicos tiveram garantido o direito de fazer greve e os partidos tornaram-se detentores dos mandatos de seus eleitos.
A lista de feitos do ativismo judicial é extensa, amplia-se a cada dia e gera um interminável debate sobre suas consequências para o equilíbrio dos Poderes. Ciente de que esse ativismo, que cresceu, em grande parte, na esteira da crise do Legislativo, dificilmente pode vir a ser contido no curto prazo, o deputado Flávio Dino (PCdoB-MA) concluiu que a saída seria dotá-lo de mais legitimidade.
É esse o escopo de sua polêmica proposta de emenda à Constituição, com mudanças nos critérios de composição e permanência dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
A Constituição prevê que os 11 ministros do Supremo sejam escolhidos pelo presidente da República entre brasileiros de 35 e 65 anos, "de notável saber jurídico e reputação ilibada".
A proposta do deputado, que transita com facilidade pela magistratura desde que presidiu a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), amplia para o Legislativo e o Judiciário a possibilidade de nomear seus integrantes.
Essa nomeação partiria obrigatoriamente de listas tríplices apresentadas pelos tribunais superiores de Justiça e Trabalho, Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público, OAB e faculdades de Direito que mantenham programa de doutorado há pelo menos 10 anos. É a esta lista tríplice que Dino atribui o antídoto a que o Supremo venha a replicar o modelo do Tribunal de Contas da União, hoje formado por indicações dos três Poderes.
Tão polêmico quanto o fim do monopólio das indicações do presidente da República é o mandato de 11 anos que a proposta sugere para os ministros.
O fim da vitaliciedade romperia a tradição anglo-saxônica a que se filia o Supremo Tribunal Federal desde sua criação e o aproximaria das cortes européias que, no pós-guerra, adotaram mandatos.
Se a vitaliciedade da Suprema Corte americana foi uma reação aristocrática aos poderes nascentes do Congresso americano, a imposição do mandato na Europa, capitaneado das mudanças trazidas pela convocação soberana do Tribunal de Nuremberg. A emergência do Estados com políticas sociais mais agressivas no pós-guerra ampliou a mediação do Judiciário e reforçou seu poder político.
No Brasil, Dino localiza no período que sucedeu a Constituinte de 1988 o início das mudanças que puseram em xeque a vitaliciedade. Ganhariam maior velocidade a partir de 2003 quando aposentou-se, junto com o último ministro indicado pelos militares, a mentalidade mais formalista na relação com o poder político.
Somado-se ao desgaste crescente de um Congresso obrigado a responder às demandas geradas pela abertura política num ambiente de permanente crise econômica, os novos poderes adquiridos pelo Ministério Público, a ampliação do acesso à justiça e a súmula vinculante trouxeram o Supremo tribunal para o centro da ribalta. Dino não tem dúvidas em afirmar que esta é, de longe, a composição mais ativista da história da Casa.
Esse ativismo foi reforçado pela intensa renovação dos seus quadros. Nenhum presidente da República terá nomeado tantos ministros do Supremo quanto Luiz Inácio Lula da Silva ao final de seu mandato: oito novos nomes. E essa maioria ativista - muito mais facilmente formada entre 11 ministros do que entre 513 deputados - pode vir a se cristalizar por duas ou três décadas.
Uma outra proposta de emenda à Constituição que já está em pauta de votação, de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), propõe a extensão do exercício do cargo de ministro do Supremo dos 70 para os 75 anos. O que significa que um ministro, teoricamente, pode vir ficar até 40 anos no poder, exacerbando o que Dino chama de aristocratização da Corte.
A bandeira da resistência à mudança é a remissão ao modelo americano, que manteve-se incólume mesmo sob momentos de grande pressão, como nos anos 1930 quando Roosevelt, inconformado contra seguidas decisões contrárias ao "New Deal", quis mudar sua composição.
À poderosa Corte americana, no entanto, contrapõe-se a força do Congresso e a vigilância da imprensa que já derrubou candidatos antes mesmos de estes se submeterem ao escrutínio parlamentar. Não há registro, no Congresso Nacional, de uma indicação ao Supremo Tribunal Federal ter sido rejeitada pelo Senado.
Flávio Dino evoca o presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, e sua tese de que o Brasil tem um sistema legislativo tricameral, em defesa da mudança nas regras de composição da Casa. Mendes é o mais novo dos ministros. Indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, deverá ser o ministro a conviver com o maior número de presidentes. Como ainda tem mais 16 anos até a compulsória aos 70 anos, além de FHC e Lula poderá a vir a coabitar com até quatro futuros presidentes.
Mendes não está entre os ministros do Supremo mais simpáticos ao mandato, ainda que a proposta preveja a aplicação das novas regras apenas para os novos ingressantes. A limitação em 11 anos permitiria que um ministro conviva com mais de um presidente e não coincida com sua permanência no poder.
A proposta está longe de conter o ativismo que, capitaneado pelo Supremo, prolifera-se na primeira instância, no Ministério Público e na Polícia Federal e lhes confere ares salvacionistas.
Está na pauta de um Congresso que, votando-a, tampouco readquirirá o protagonismo da ação política. Limita-se a oxigenar a composição de uma Corte que tem legislado sem o voto popular que a legitime. E bem que poderia sacudir o Poder ao lado que, legitimado, não legisla.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário