domingo, 14 de dezembro de 2025

É bom o Brasil sair às ruas. Por Dorrit Harazim

O Globo

Sobram motivos para a crescente ira cívica diante do apodrecimento moral, ético e político da Casa do Povo

Uma parte do Brasil promete ir às ruas hoje. A esbórnia encenada na Câmara acéfala do minúsculo Hugo Motta, e pela liderança ressentida de Davi Alcolumbre no Senado, conseguiu atropelar o torpor nacional. Truculência institucional à parte, o estopim para a convocação dos movimentos sociais de esquerda foi a aprovação do PL da Dosimetria, que reduz as penas para condenados nos atos antidemocráticos do 8 de Janeiro, enxugando para pouco mais de 36 meses os 27 anos de prisão do chefe da quadrilha e ex-presidente, Jair Bolsonaro.

Sobram, portanto, motivos para a crescente ira cívica diante do apodrecimento moral, ético e político da Casa do Povo. Mas indignação sem ação serve apenas para aplacar a consciência do indignado — libera-o da obrigação de analisar como chegamos a este nível de apodrecimento. Ir às ruas empunhando um cartaz “Congresso Inimigo do Povo” é fácil, porém quase suicida — equivale ao direitista “STF Inimigo do Povo”. Bem mais eficaz é tomar as ruas nomeando quem julgamos indignos do voto recebido e trabalhar para que não sejam reeleitos.

De todo modo, a força das massas pode ser contagiosa. Dependendo de sua autenticidade, dinâmica e representatividade, ela consegue mover indecisos, atropelar a mídia, surpreender pesquisas de opinião e perturbar os encastelados no poder. Isso em regimes de instituições (ainda) democráticas. Para regimes opressivos, a conversa é outra. Nenhum poder totalitário se mantém só por meio de coação, mas pelo conformismo de boa parte da população em agir como se acreditasse na ideologia oficial.

Um ensaio publicado pelo dramaturgo, poeta e posteriormente estadista Václav Havel, da antiga Tchecoslováquia comunista, traz um ensinamento. O texto de 1978, intitulado “O poder dos sem-poder”, analisa o sistema pós-totalitário da Europa Oriental. Nele, argumenta o autor, mesmo aqueles que parecem impotentes diante de regimes opressores detêm poder — não força física nem poder político, mas a capacidade de “viver na realidade”.

Ao contrário dos dissidentes heroicos idealizados pela História, Havel escolhe para sua metáfora um quitandeiro comum cuja clareza moral e recusa em continuar com uma farsa cotidiana conseguem perturbar a ordem vigente. Certa manhã, o tal quitandeiro simplesmente não afixa na porta da quitanda o cartaz oficial que sempre montou automaticamente:

— Trabalhadores do mundo, uni-vos.

Não por afronta. Apenas se deu conta de que não acreditava naquele slogan, por isso decidiu removê-lo. Apenas para agradar a si mesmo, adquirindo no ato um poder latente que brotou da recusa em participar de uma mentira institucionalizada.

O quitandeiro agora dissidente passa a não mais votar em eleições que sabe serem uma farsa e começa a falar o que pensa. Rejeita o ritual, quebra as regras do jogo e destrói o mundo de aparências, pilar fundamental do sistema. Será dispensado do cargo de quitandeiro e desterrado para o armazém. O salário será reduzido, o sonho de férias na Bulgária evaporará, e o ensino superior dos filhos será cancelado. Mas dará a sua pequena liberdade um significado concreto: a tentativa de viver dentro da verdade e de permitir que outros espiassem atrás da cortina das aparências.

Ressalvas não faltam à aplicabilidade prática do conceito de resistência moral nos contextos em que o enfrentamento direto e a busca por mudanças estruturais são imprescindíveis. Concentrar-se na dissidência individual e na linguagem da verdade soa ingênuo, insuficiente e moralista. Além disso, a ideia de que a mentira institucionalizada só se mantém pela conformidade geral tampouco capta a complexidade das relações de poder. Mas vale lembrar que foi com ideias assim que o dissidente Havel tornou-se presidente, primeiro da Tchecoslováquia e, na sequência da divisão do país já democratizado, da República Tcheca, por dois mandatos.

Cidadãos detêm inúmeras formas de defender sua democracia. Somente entre 1900 a 2006, as pesquisadoras americanas Erica Chenoweth e Maria Stephan analisaram 323 movimentos de resistência democrática bem-sucedidos no mundo. Daí a pergunta persistente envolvendo os Estados Unidos às vésperas de seus 250 anos de Independência: por que não surgiu nenhum movimento de resistência à sistemática corrosão das instituições americanas empreendida por Donald Trump em seu segundo mandato? Esse “miasma de passividade”, como escreveu David Brooks na revista The Atlantic, assusta.

Daí ser bom o Brasil sair às ruas em pleno domingão pré-natalino para se fazer ouvir. Quem sabe o ruído chega aos múltiplos representantes do povo no Congresso que há muito perderam vergonha, decência e respeito?

 

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