Mais célebre crítico literário do país falou sobre o livro epistolar "Pio & Mário'
Estudo sobre troca de cartas entre fazendeiro e Mário de Andrade era projeto da ensaísta Gilda de Mello e Souza, que morreu em 2005
"Eu me sinto aqui um pouco como um mero substituto", disse o mais importante crítico literário do país, Antonio Candido, 90, anteontem, a um teatro Anchieta bastante cheio.
Quase 200 pessoas estavam no auditório, em São Paulo, para ouvi-lo falar sobre o livro "Pio & Mário - Diálogo da Vida Inteira" (Sesc SP/ Ouro sobre Azul, 424 págs., R$ 96).
O autor de "Formação da Literatura Brasileira" (1959), que teve ajuda para subir ao palco, referia-se ao fato de o recém-lançado volume ter sido um projeto ao qual sua mulher, Gilda de Mello e Souza (1919-2005), dedicou anos da vida.
"Procurarei seguir as ideias da Gilda, a partir do material que ela reuniu", disse ele ao público, que incluía o crítico literário Roberto Schwarz, o diretor do Museu Lasar Segall, Jorge Schwartz, e a escritora Lygia Fagundes Telles, entre outros.
Sobrinha-neta do fazendeiro Pio Lourenço Corrêa (1875-1957), Gilda tinha o intuito de escrever um estudo sobre as dezenas de cartas trocadas entre ele e o escritor Mário de Andrade (1893-1945). Ela morreu antes de finalizar a introdução.A coordenação foi assumida então pela filha do casal, Ana Luisa Escorel, editora da Ouro sobre Azul. E Antonio Candido dedicou-se a escrever os traços biográficos de Pio Lourenço.
"Desconhecido"
"Quis falar sobre ele, e não sobre o Mário, porque o Mário todos conhecem", explicou.
Esse "desconhecido", a quem o escritor se dirigia como "tio Pio", era na verdade casado com uma prima de Mário, Zulmira, e amigo do pai dele, Carlos Augusto de Andrade.
A correspondência entre os dois durou de 1917 até a morte do modernista e foi "diferente da maior parte das outras dele, por não ter sido com outro escritor, e por ser a mais longa."
À moda de seu famoso texto "A Vida ao Rés-do-Chão", em que celebra a "despretensão" da crônica como gênero literário, Candido apresentou Pio Lourenço Corrêa num relato bem-humorado, contando apenas fatos pitorescos de sua vida.
Lembrou, por exemplo, a insistência do fazendeiro em provar que o nome de sua cidade natal, Araraquara, significa "cova onde nasce o sol", e não "cova das araras" -de nota de rodapé, a tese virou livro, "Monografia da Palavra Araraquara", com quatro edições.
"Provar isso ocupou a vida toda dele. Achava que o povo do Brasil inteiro estava interessado nisso", disse Candido, arrancando gargalhadas do público.O crítico ressaltou também que o fazendeiro, "um pouco maníaco" pela perfeição, tinha um "talento linguístico excepcional" e o usava em longas discussões com o amigo famoso.
Em carta de 1917, por exemplo, Pio aconselha a Mário que, numa segunda edição do livro "Há uma Gota de Sangue em Cada Poema", retire os circunflexos da contração "pela": "Foi um lapso, bem sei: mas muito repetido, e deu-me na vista".
Candido destacou ainda a "tensão estilística" perceptível entre os dois. "Pio era um cultor do vernáculo, e o Mário queria subverter o vernáculo. De maneira que ele realmente não gostava das coisas que o Mário escrevia. Achava "Macunaíma" uma coisa horrível."
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