O discurso do presidente dos Estados Unidos Barack Obama ao receber o Prêmio Nobel da Paz em Oslo remete a uma famosa troca de correspondência em 1932, entre o criador da psicanálise, Sigmund Freud, que não recebeu o Nobel, e ninguém menos que Albert Einstein, o Prêmio Nobel de Física de 1921: “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?”, foi o tema proposto para os dois pela Liga das Nações, a precursora da ONU, sobre o qual já escrevi aqui na coluna
As angústias existenciais reveladas por Obama em seu discurso, quando se depara com o paradoxo de que “a crença de que a paz é desejável raramente é suficiente para atingi-la”; ou então quando afirma que “haverá momentos em que os países acharão o uso da força não apenas necessário, mas moralmente justificado”, são enfrentadas por Freud.
Diz ele a certa altura da correspondência: “Por paradoxal que possa parecer, devese admitir que a guerra poderia ser um meio nada inadequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz ‘perene’, pois está em condições de criar as grandes unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras”.
Embora admita que “os resultados da conquista são geralmente de curta duração”, Freud constata que algumas guerras “contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentro das quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou os conflitos”.
Ele cita as conquistas dos romanos, que deram aos países próximos ao Mediterrâneo “a inestimável pax romana, e a ambição dos reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente”.
Para Freud, o ponto de partida é a relação entre o direito e o poder, que ele prefere chamar de violência.
“Atualmente, direito e poder se nos afiguram como antíteses.
No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra”, diz Freud, para fazer uma análise da evolução do uso da violência para resolver os conflitos no reino animal, “do qual o homem não tem motivos por que se excluir”.
Sua análise mostra que inicialmente houve “a dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior — a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada pelo intelecto”.
Essa violência, segundo Freud, acabou sendo contraposta pela descoberta de que a união faz a força.
No entanto, “a justiça da comunidade passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes”.
Ao mesmo tempo em que detentores do poder querem estar acima das leis, os membros oprimidos fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos.
Quando Obama adverte em seu discurso que as pessoas não se enganem pois “a maldade existe”, retomando tese muito grata à política externa anterior de George W. Bush, que identificava a existência de paísesbandidos para justificar as guerras preventivas, tem na análise de Freud um suporte importante: “Nem todas as guerras são passíveis de condenação em igual medida, de vez que existem países e nações que estão preparados para a destruição impiedosa de outros, esses outros devem ser armados para a guerra”.
Na sua carta a Freud, Einstein arrisca uma análise psicológica sobre a razão de o homem aceitar ir para a guerra, a ponto de sacrificar a vida: “O homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição.
Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais”.
Depois de dizer que “de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens”, Freud passa a analisar “nosso instinto destrutivo”, que “está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada”.
Freud descreve para Einstein, então, sucintamente, a “teoria dos instintos”, que acabara de ser formulada. Os instintos humanos seriam de dois tipos: os eróticos, que tendem a preservar e unir, e os destrutivos, que tendem à destruição e a matar.
“Nenhum desses instintos é menos essencial que o outro”, ressalta Freud. “Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra”.
O “instinto de morte” teria sua contrapartida nos instintos eróticos, que representariam “o esforço de viver”.
Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes para Freud: “o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas consequentes vantagens e perigos”.
A guerra se constitui, nessa análise, “na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela”.
E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista?, pergunta Freud, que acredita que “pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra”.
Tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra, escreveu Freud, dando respaldo à esperança deixada por Obama em seu discurso, a de “buscar um mundo como ele deve ser, com a fagulha do divino que ainda se move em cada uma de nossas almas”.
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