domingo, 19 de dezembro de 2010

A busca da verdade :: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

No discurso que fiz quando tomei posse recentemente na Academia Brasileira de Filosofia, na cadeira 48, cujo patrono é Hipólito da Costa - fundador do primeiro jornal brasileiro, o "Correio Braziliense", impresso em Londres em 1808 -, destaquei o surgimento das novas tecnologias e seu impacto na relação do jornalismo com a sociedade.

O ponto de interseção entre o jornalismo e a filosofia é a busca desinteressada da verdade, a principal tarefa do jornalista, a ponto de constituir-se em um imperativo ético da profissão.

Nesse particular, os vazamentos de documentos da diplomacia americana pelo WikiLeaks têm a função de revelar os meandros das tomadas de decisão dos governos, o que colabora para a descoberta da verdade, cuja revelação nunca será total por ser a verdade, por definição, inesgotável.

Mas, como comenta o sociólogo Manuel Castells, um dos principais estudiosos dos novos meios de comunicação e seus efeitos na sociedade moderna, "nunca mais os governos poderão estar seguros de manter seus cidadãos na ignorância de suas manobras".

Ele diz que "seria preciso sopesar" o risco da revelação de comunicações secretas que poderiam dificultar as relações entre Estados "contra a ocultação da verdade sobre as guerras aos cidadãos que pagam e sofrem por elas".

Desse ponto de vista, sem dúvida o que Julian Assange e seu blog WikiLeaks fazem é puro jornalismo, embora, por suas declarações, se possa concluir que a motivação para a exigência de transparência dos governos não seja informação pura e simples, mas uma ação anárquica contra todo tipo de governo, o que retiraria a característica jornalística de sua atividade para transformá-la em ação política, como alguns o veem.

Com relação ao jornalismo, há um livro canônico, "Os elementos do jornalismo", no qual os jornalistas americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel definem como a finalidade do jornalismo essa busca da verdade e a responsabilidade com o cidadão: "fornecer informação às pessoas para que estas sejam livres e capazes de se autogovernar".

No discurso, destaquei que o problema da ética jornalística tem uma complicação própria.

Exercemos um papel socialmente relevante - ao produzir um primeiro nível de conhecimento, acabamos por ser um canal de comunicação que liga Estado e nação, mas também os muitos setores da nação entre si.

É nossa atribuição fazer com que o Estado conheça os desejos e as intenções da nação, e com que esta saiba os projetos e desígnios do Estado. Ainda, incumbe-nos permitir à sociedade acompanhar, com severidade de fiscal, aquilo que os governos fazem em seu nome e, supostamente, em seu benefício.

Justifica-se essa definição de nosso papel com o fato de que, no sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação, que aproxima representados e representantes.

Essa função do jornalismo sem dúvida foi afetada pelo surgimento das novas mídias, que - na opinião do professor brasileiro Rosental Calmon Alves, da Universidade do Texas, em Austin, um dos maiores especialistas no assunto - representa uma revolução que só pode ser comparada, na História das comunicações, com a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1495.

Ele não está falando apenas da internet, mas da revolução digital que está transformando profundamente o mundo em que vivemos.

Não é uma simples evolução tecnológica, que dá seguimento às evoluções do século passado; é muito mais do que isso. É uma ruptura de paradigmas. A revolução digital tem como impacto mais importante a repartição de poder dos meios de comunicação de massa com os indivíduos, destaca Rosental.

Essa é a nova sociedade civil global que está se formando, na definição do sociólogo Manuel Castells, da University of Southern California, nos Estados Unidos, que tenta preencher o "vazio de representação" a fim de legitimar a ação política, fazendo surgir "mobilizações espontâneas usando sistemas autônomos de comunicação".

Internet e comunicação sem fio, como os celulares, fazendo a ligação global, horizontal, de comunicação, proveem um espaço público como instrumento de organização e meio de debate, diálogo e decisões coletivas, ressalta Castells.

Mas é o jornalismo, seja em que plataforma se apresente, que continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático.

O jornalismo de qualidade, tão importante para a democracia, teve papel fundamental na divulgação dos documentos do WikiLeaks, e não foi à toa que Assange procurou companhias de jornalismo tradicional, como "The New York Times", para dar credibilidade a seu trabalho.

A tese de que as novas tecnologias, como a internet, blogs, Twitter e redes sociais de comunicação, como o Facebook, seriam elementos de neutralização da grande imprensa é contestada por pesquisas.

Especialistas das universidades de Cornell e Stanford demonstram que a internet é a "caixa de ressonância" da grande imprensa, de que precisa para se suprir de informação, e para dar credibilidade às informações.

Não é à toa que os sites e blogs mais acessados tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil são aqueles que pertencem a companhias jornalísticas tradicionais, já testadas na árdua tarefa de selecionar e hierarquizar a informação. O jornalismo profissional tem uma estrutura, uma deontologia, uma forma profissional de colher e checar informações que a vasta maioria dos blogueiros não tem, define Rosental.

O filósofo alemão Jürgen Habermas revelou, em artigo recente, seu temor de que os mercados não façam justiça à dupla função que a imprensa de qualidade, segundo ele, até hoje desempenhou: atender à demanda por informação e formação.

No artigo, intitulado "O valor da notícia", Habermas ressalta que estudos sobre fluxos de comunicação indicam que, ao menos no âmbito da comunicação política - ou seja, para o leitor como cidadão -, a imprensa de qualidade desempenha papel de "liderança": o noticiário político do rádio e da televisão depende em larga escala dos temas e das contribuições provenientes do que chama de jornalismo "argumentativo".

Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública não tem como produzir essa energia, escreveu Habermas, e o próprio Estado democrático pode acabar avariado.

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