Reino Unido é prova de que o fanatismo pela austeridade só provoca retrocessos na economia
O delicioso e sutil humor britânico olha para o canal da Mancha, em dias de nevoeiro, e diz orgulhosamente: "O continente está isolado".
São dias de nevoeiro intenso na Europa, mas não dá para dizer que as ilhas britânicas estão isoladas da tormenta sobre o continente.
Prova-o a greve dos funcionários públicos de ontem, que o "Guardian" batizou de a maior em mais de 30 anos, envolvendo algo em torno de 2 milhões de pessoas. Se a cronologia do jornal está correta, o Reino Unido está de volta aos anos de Margaret Thatcher, o período que quebrou a espinha dos sindicatos e estabeleceu o neoliberalismo.
A greve é uma resposta ao pacote de austeridade do governo David Cameron. Ou ao que o Nobel de Economia Paul Krugman chama de predomínio dos "fanáticos da dor".
A dor não é pequena nem pega só o setor público. "A economia em 2016 será 13% menor do que esperávamos há um par de anos e mais de 3% inferior ao que pensávamos faz seis meses, uma mudança extraordinária", disse à BBC o diretor do Instituto de Estudos Fiscais, Paul Johnson. Consequência óbvia, sempre segundo Johnson: "As pessoas vão ser muito mais pobres e só em 2015 voltarão aos níveis de 2001".
Tem razão, pois, o principal colunista do "Financial Times", Martin Wolf, ao afirmar que "o Reino Unido está caminhando para uma década perdida", como se as orgulhosas ilhas fossem uma Argentina ou um Brasil de antigamente, que também tiveram décadas perdidas.
O que é ainda mais revoltante é que a dor está sendo imposta sem que resolva os problemas do deficit e da dívida, ao contrário do que dizem fundamentalistas do mercado.
"A previsão é a de que o deficit e a dívida fiquem piores", escreve ainda Wolf, que já foi fundamentalista de mercado, mas perdeu pelo menos parte da fé como consequência da crise de 2008/2009. O colunista, uma das figuras mais instigantes que participa anualmente dos fóruns de Davos, escreve: "A lição talvez mais importante é que não temos uma mísera pista do que vai acontecer com a economia. Da mesma forma, enquanto o "chancellor" [George Osborne, equivalente a ministro da Economia] pensa que sabe como os mercados financeiros vão responder à menor mudança em seus planos, ele não sabe".
O que Wolf está querendo dizer é que tomar como palavra de Deus o ajuste fiscal puro e duro não é ciência, mas fé religiosa. Não resolve o problema imediato, tanto que o crescimento do Reino Unido no último trimestre do ano será zero, segundo o próprio Banco da Inglaterra. Nem alivia, por extensão, o desemprego, instalado em 8,3%, o mais alto desde 1996. Nem resolve o problema do crescimento a médio prazo, como mostra a perspectiva de "década perdida". Nem, por fim, alivia a dívida: a conta mais recente mostra que o endividamento no ano teoricamente eleitoral de 2015 terá que ser de € 79 bilhões, em vez dos € 33 bilhões até agora estimados.
Pena que o continente pareça de fato isolado das lições que emanam das ilhas e adote, por isso, o mesmo fanatismo da dor.
FONTE: FOLHA DE S. PAULO
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