A democracia brasileira está prestes a completar a sua maioridade sem que nenhum ator político se atreva a jogar fora das regras democráticas. O Brasil foi capaz de alcançar equilíbrio macroeconômico, diminuir a pobreza e a desigualdade, adquirir credibilidade internacional, diminuir o desemprego, alcançar o posto de sexta economia do mundo etc. Alcançar tal desempenho em um curto intervalo de tempo não é uma tarefa trivial. Por que então continuamos com a sensação de que as coisas não funcionam bem? Por que o sistema político brasileiro é sempre responsabilizado pela metade vazia do copo?
Até muito pouco tempo atrás a combinação de presidencialismo e multipartidarismo era vista como improvável. Impasses frequentes e paralisia decisória predominavam em função da suposta dificuldade de presidentes minoritários em costurar coalizões sustentáveis em um ambiente fragmentado. Preponderava a interpretação de que democracias com este desenho institucional seriam um desastre. Para os mais otimistas, seriam difíceis e "caras" de serem gerenciadas. Para os alarmistas, um convite a "trocas escusas" entre elites políticas. Diante disso, reformas políticas de todas as matizes foram imaginadas. A alternativa tida como "superior" seria o sistema majoritário bipartidário, que supostamente ofereceria mais transparência e responsabilização de governantes.
Entretanto, contrariamente à expectativa negativa generalizada, a "difícil" combinação de presidencialismo e fragmentação tem funcionado relativamente bem. Na realidade, o modelo que antes era interpretado como caos governativo, polarização ideológica, falta de cooperação e propenso a instabilidade se transformou no padrão a ser emulado pelas novas democracias, não apenas na America Latina.
A viabilidade e a funcionalidade, até certo ponto inesperadas, do presidencialismo multipartidário demandam uma explicação. Este arranjo institucional pertence a uma classe especial de modelo constitucional que não opera como o presidencialismo bipartidário americano, nem tão pouco como regimes parlamentaristas multipartidários europeus. Há três elementos necessários para a boa governança em presidencialismo com fragmentação partidária.
Primeiro, o presidente necessita concentrar poderes legislativos e de agenda delegados pelo Congresso. Aqui, entretanto, uma distinção se faz necessária: onde presidentes concentram poderes unilateralmente não se tem delegação legítima de poderes constitucionais, mas usurpação de direitos civis e abuso de poder como, por exemplo, tem sido o caso da Venezuela. No caso brasileiro, contudo, a maioria dos legisladores constituintes perceberam que um presidente fraco não teria capacidade de governar em um ambiente partidário altamente fragmentado. A saída encontrada foi delegar uma série de poderes para que o presidente funcionasse como uma espécie de coordenador do jogo com o Legislativo.
Segundo, a existência de moedas de troca (ministérios, emendas no orçamento, cargos na burocracia, concessões políticas etc.) institucionalizadas capazes de atrair o apoio intertemporal de partidos e legisladores para a coalizão do presidente. Em ambientes institucionais fragmentados, a lealdade partidária, a ideologia, ou mesmo os poderes de agenda do presidente não são suficientes para determinar o apoio de parlamentares no Congresso. Ou seja, a provisão institucionalizada de moedas de troca é crucial para a funcionalidade e fluidez de coalizões, na maioria das vezes ideologicamente heterogêneas e com muitos partidos.
O terceiro elemento é a presença de uma rede de instituições de "checks and balances" independentes (Judiciário, Ministério Público, tribunais de contas, Polícia Federal, mídia etc.) capaz de checar potenciais desvios do Executivo. Ou seja, um presidente poderoso não significa necessariamente um "cheque em branco" para as ações desse Executivo. Muito pelo contrário! Para que um presidente forte seja capaz de coordenar uma democracia fragmentada de forma competitiva e virtuosa, instituições de controle e accountability independentes e robustas têm que estar presente constrangendo as ações do próprio Executivo. Competição política e fragmentação partidária também funcionam como restrições as ações do presidente. Daí porque diminuir a fragmentação partidária seria contraproducente nesse contexto de dominância do Executivo.
O Brasil possui esses três elementos em seu presidencialismo multipartidário. Para se ter uma ideia da eficiência desse modelo, a maioria dos presidentes brasileiros pós-redemocratização foram capazes de construir e de sustentar coalizões majoritárias. Em que pese a dominância do Executivo no jogo político, a rede de instituições de controle e "accountability" tem exercido um papel fundamental monitorando as ações do Executivo e restringindo os seus desvios. Os escândalos de corrupção que levaram à demissão de seis ministros do governo Dilma em seu primeiro ano de governo são exemplos recentes do grande ativismo das estruturas de "checks and balances", em que pese o pessimismo que muitos alimentem dessas instituições de controle.
Presidencialismo multipartidário não deve ser interpretado como um sistema ideal ou que não precise de ajustes. De fato, ainda padecemos de uma série de problemas graves tais como desigualdade, corrupção ou falta de transparência. Ainda assim, as regras do nosso sistema político têm gerado equilíbrio e cooperação com um resultado líquido positivo. Reconhecer os aspectos positivos do presidencialismo multipartidário pode nos ajudar a perceber não apenas a metade vazia, mas também a metade cheia do nosso copo.
Carlos Pereira é professor titular na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getulio Vargas (FGV), professor visitante da Brookings Institution.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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