Apalavra "verdade", na Comissão da Verdade e da Reconciliação instituída pela África do Sul, tinha um significado judicial, relacionado aos poderes do organismo. Nossa Comissão da Verdade, pelo contrário, não tem poderes judiciais. Por esse motivo, a palavra "verdade" deveria ser eliminada de seu nome.
As prerrogativas da comissão sul-africana, presidida pelo arcebispo Desmond Tutu, abrangiam não apenas a investigação de violações de direitos humanos cometidas durante o regime do apartheid, mas, crucialmente, a concessão de reparações às vítimas e de anistia individual a perpetradores. A comissão brasileira não dispõe das duas últimas prerrogativas: as reparações são da esfera da Comissão de Anistia e a anistia já foi concedida a todos, por meio de lei emanada da ditadura militar, recepcionada por sucessivos governos civis e confirmada pelo STF. O mandato de nossa comissão está circunscrito por lei à produção de um relatório sobre violações de direitos humanos por motivação política entre 1946 e 1988. Para não abusarmos da noção de verdade, seu nome deveria ser algo mais modesto, como Comissão de Inquérito.
Verdade histórica é diferente de verdade judicial. Nos tribunais, e numa comissão com poderes judiciais, como a sul-africana, a verdade é uma narrativa factual organizada à luz dos códigos legais. A decisão final, transitada em julgado, é uma "verdade" irrecorrível, com implicações penais ou cíveis. A "verdade" histórica, por outro lado, é uma interpretação dos eventos do passado que oscila ao sabor do "espírito do presente" - isto é, dos valores predominantes em cada época. Verdades distintas concorrem entre si nas obras de História, formando um diálogo pluralista e, em princípio, infindável. Uma comissão sem estatuto judicial, mas batizada com o nome da verdade, almeja a verdade histórica. Contudo, por definição, a verdade histórica não pode ser emoldurada com o selo oficial - a não ser como contrafação fabricada por regimes totalitários.
A Lei de Anistia cercou as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura militar com uma muralha de interdição, cassando ao sistema judiciário o poder de julgar crimes políticos declarados imprescritíveis por tratados internacionais. Vergonhosamente, a elite política brasileira teceu um consenso em torno da lei promulgada no derradeiro governo militar - e, em virtude de tal consenso, as maiorias parlamentares de sustentação de Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma se recusaram a suprimir o interdito. Num intercâmbio lamentável, a proteção dos violadores foi paga, por meios pecuniários e simbólicos, pela Comissão de Anistia. Se não mudar seu nome, a Comissão da Verdade cumprirá o papel indigno de emitir o cheque simbólico final na agônica transação.
Na sua acepção judicial, a verdade está relativamente livre do jogo da política e da ideologia. A comissão sul-africana ouviu testemunhos de crimes cometidos pelo Estado e, também, das organizações de resistência, contextualizando-os segundo os princípios do Direito. Se o Brasil tivesse abolido a Lei de Anistia, tribunais emitiriam sentenças sobre as incontáveis violações cometidas impunemente pela ditadura militar e, também, sobre os escassos casos de crimes das organizações armadas que não foram julgados à época. Isso, infelizmente, não acontecerá - e a ausência do Poder Judiciário coloca a Comissão da Verdade diante do dilema expresso nas interpretações históricas dissonantes a respeito dos "anos de chumbo".
A narrativa do combate nas trevas entre os "dois lados", representados pelo regime militar e pelas organizações armadas de esquerda, é uma fraude histórica e uma tese imoral. A repressão política, as prisões e a tortura atingiram os opositores em geral, em sua maioria desarmados, não apenas as correntes minoritárias da esquerda armada. O poder de Estado, com seus aparelhos judiciais, policiais e militares, não pode ser equiparado aos grupos irregulares de militantes das organizações seduzidas pela estratégia do "foco revolucionário". O assassinato e a tortura nos calabouços são definidos no direito internacional como crimes contra a humanidade, distinguindo-se por sua gravidade dos demais tipos de crimes. Carlos Marighella e Carlos Lamarca praticaram crimes asquerosos. Mesmo assim, eles não podem ser equiparados aos crimes do delegado Sérgio Fleury, do general Ednardo D"Ávila Mello ou do presidente Emílio Garrastazu Médici.
A historiografia, tanto quanto os tribunais, tem ferramentas para destruir o falso sinal de identidade desenhado com a finalidade de providenciar um álibi à ditadura militar. O leitor decente sabe separar as narrativas históricas legítimas das fábulas ideológicas destinadas a justificar crimes contra a humanidade. Contudo, a pretensão impossível de estatizar a verdade histórica no regime democrático confere à narrativa delinquente sobre os "dois lados" a aura de uma "verdade sufocada" em confronto desigual com uma "verdade dos vencedores".
Uma comissão de inquérito consagrada ao relato dos crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar seria capaz de iluminar fatos, personagens e circunstâncias ainda desconhecidos, oferecendo material valioso para os historiadores. Em contraste, uma Comissão da Verdade sem poderes judiciais está condenada a fabricar interpretações estatais sobre o passado, algo com valor de verdade similar ao dos retratos encomendados pelos mecenas.
O conceito africano de ubuntu relaciona-se à ideia de que a humanidade de cada indivíduo depende da dignidade humana de todos os demais. A comissão sul-africana tinha a missão escrita de promover "ubuntu", não "retaliação" nem "vitimização". Nossa comissão não pode promover ubuntu, mas ao menos não precisa se engajar em operações simbólicas de retaliação e vitimização. Eliminem a "verdade", senhores comissários!
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
FONTE: O GLOBO
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