Com cinismo e instinto de sobrevivência, o Congresso prepara um dos capítulos mais vergonhosos de sua história. O desenlace era previsível e com data marcada: quando e se ocorresse o mega-acordo de delação premiada de mais de 70 executivos da Odebrecht. O pretexto é obra-prima de oportunismo: as 10 medidas contra a corrupção encaminhadas pelo Ministério Público, subscritas por dois milhões de cidadãos. O pretexto: a tipificação legal do caixa 2 que, por inexistir com este nome e com descrição pormenorizada, deixaria livre de sanções os políticos que fizeram uso dessa prática, que é generalizada nas eleições e fora delas.
O presidente do Senado, Renan Calheiros, alvo de 12 inquéritos no Supremo Tribunal Federal, e o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), passaram o dia de ontem repetindo o mantra, inscrito no artigo 1º do Código Penal, de que "não há crime sem lei anterior que o defina", para rebater que haja anistia onde não há sequer crime. "Isso é só um jogo de palavras para desmoralizar e enfraquecer o parlamento brasileiro", disse Maia. "É forçação", comentou Renan.
De qualquer forma, malogrou ontem uma sessão da Câmara para votar o projeto de lei 4850, que incorpora algumas das dez medidas propostas, e encerrar a questão, para alívio do Congresso. Não houve acordo entre os partidos sobre a viabilidade de uma emenda para deixar claro que a lei a ser aprovada não pode retroagir e, se possível, enfiar no mesmo saco da impunidade as qualificações de corrupção passiva, ativa e lavagem de dinheiro com os quais a Lava-Jato entrará no encalço de mais de 100 políticos, uma vez sacramentada a delação de Marcelo Odebrecht e seus executivos.
Cenas típicas da política brasileira se desenrolaram nos últimos dias. Sob a capa de um projeto necessário e moralizador, elaborado por membros da força-tarefa da Lava-Jato, a maior operação contra a corrupção da história republicana, busca-se aprovar um salvo conduto generalizado aos políticos que são alvos do Ministério Público. Peritos em desvendar os complexos caminhos do dinheiro ilícito no país e no exterior, os procuradores não contavam com a astúcia dos parlamentares. A intenção do MPF foi criminalizar os partidos políticos, além da pessoas físicas de seus dirigentes, pela contabilidade paralela e por recursos recebidos e não declarados. A rasteira que o Congresso pode aplicar significa aceitação da premissa do MPF que, enfim, haja punições mais severas - a partir da próxima legislatura.
Ainda que a peça legislativa da anistia explícita não vingue, com a tipificação do crime dos caixa dois eleitoral - mudança do artigo 354-A da lei 4.367, de julho de l965 -, abre-se uma avenida para uma batalha legal com a qual deputados e senadores, que já dispõem de foro privilegiado, poderão ganhar tempo.
A manobra, o que é lamentável, conta com apoio de quase todos os partidos no Congresso, e foi a primeira reação organizada para escapar às garras da Lava-Jato. Há outras a caminho, como a do PP, legenda com 38 membros envolvidos nas denúncias da operação, que pretende estabelecer prazo máximo de um ano para que eventuais denúncias sejam feitas pela Justiça. Há no Senado o projeto contra o abuso de autoridade que, como o do caixa dois, tem motivos justificáveis e necessidades reais a lhe servir de base, mas que pode servir a outros, injustificáveis, por um Congresso sob intensa pressão da lei.
Mesmo assim, as investigações da Lava-Jato desvendaram crimes que vão bem além do caixa 2, que não serão atingidos pela manobra legislativa. A combinação entre líderes políticos para indicar membros de diretorias de estatais, como a Petrobras, para receber propinas por empresas que superfaturam seus contratos e assim abastecer fortunas privadas de parlamentares e campanhas públicas de partidos políticos, revelou a formação de grandes quadrilhas para assaltar o Estado. E isso é diferente, e até pior, do que a doação legal ou ilegal de recursos de empresas privadas para que congressistas votem projetos de seu interesse ou impeçam outros que as prejudiquem.
A desmoralização própria que deputados e senadores promovem à luz do dia para salvar a pele é um espetáculo vexaminoso. Ainda mais grave é a desmoralização da própria democracia. A experiência política recente é triste e deixa a certeza de que pior do que a atual legislatura, só a próxima.
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