O governo americano voltou a elevar, nas últimas semanas, o tom da retórica protecionista, chegando até a falar de guerra comercial. Esse é um risco que vai perdurar ao longo deste ano eleitoral nos EUA. Os demais países, incluindo o Brasil, devem se mobilizar para reforçar o sistema de comércio multilateral. União Europeia (UE) e China terão um papel fundamental nisso.
Sob o presidente Donald Trump, os EUA aparentemente se arrependeram do sistema multilateral que eles criaram a partir de 1947, com o Acordo Geral de Tarifas e Preferências (o Gatt), e que culminou na Organização Mundial do Comércio (OMC), de 1995. A OMC é o único órgão internacional ao qual os EUA se submetem sem ter poder de veto. Isso desagrada a muitos em Washington.
Trump reiterou a insatisfação comercial no seu primeiro discurso sobre o Estado da União, na noite de terça-feira. "Os EUA finalmente viraram a página em relação a décadas de acordos comerciais injustos, que sacrificaram nossa prosperidade e que levaram para fora nossas empresas, nossos empregos e a riqueza da nossa nação. A era da capitulação econômica acabou. De agora em diante, queremos que as relações comerciais sejam justas e recíprocas. Vamos trabalhar para ajustar acordos comerciais ruins e negociar novos acordos. E vamos proteger os trabalhadores e a propriedade intelectual americanos por meio da aplicação forte das nossas leis comerciais."
O presidente tem alguma razão quanto à China. Pequim dribla com habilidade algumas regras da OMC. É o caso, por exemplo, do subsídio disfarçado que seus bancos públicos concedem a empresas do país. Ou ainda da obrigatoriedade de parcerias com empresas locais, o que favorece o furto de propriedade intelectual. Além disso, a China dificulta ou impede o acesso de empresas estrangeiras aos seus imensos mercados de serviço e financeiro, setores que não estão sob supervisão da OMC.
O déficit comercial dos EUA com a China bateu recorde em 2017, atingindo US$ 275,8 bilhões, segundo dados chineses. Esse valor deverá equivaler a metade do comercial total dos EUA em 2017, que cresceu em relação a 2016 e ficará em torno de US$ 560 bilhões.
Contra esse déficit, Trump retirou os EUA de negociações comerciais (como a Parceria Transpacífico, a TPP), ordenou a renegociação de acordos em vigor (como o Nafta), adotou (e ameaça adotar mais) sobretaxas contra produtos importados e vem desidratando a OMC, ao barrar a indicação de juízes da entidade. Na semana passada, em Davos, o secretário de Comércio dos EUA disse que "guerras comerciais" são travadas todos os dias, banalizando uma expressão que autoridades de todo o mundo evitam usar. E o secretário do Tesouro defendeu um dólar fraco, que daria vantagem comercial aos EUA.
Tudo isso contraria décadas de políticas do Partido Republicano, de Trump, que sempre se colocou como defensor do livre comércio.
Mas protecionismo e isolamento não são a resposta correta ao déficit dos EUA. Erguer barreiras comerciais não ajudará a melhorar a competitividade americana nem trará de volta empregos perdidos por conta da globalização. Aliás, desde que Trump assumiu, o número de empregos na indústria automobilística americana caiu, apesar do setor ser peça-chave na propaganda protecionista do presidente.
O engajamento com a comunidade global é a forma mais benéfica a todos de resolver questões comerciais. Mas Trump se mostra pouco disposto à colaboração multilateral.
Cabe, assim, aos demais países, em especial aos líderes, a responsabilidade de manter um sistema que ajudou na prosperidade e na paz mundial - nunca é tarde lembrar que disputas comerciais foram uma das causas das duas guerras mundiais do Século XX.
Japão, Austrália e Canadá mostraram visão ao liderarem o prosseguimento do TPP sem os EUA. O acordo deve ser assinado em março.
A China precisa fazer jus às declarações do presidente Xi Jinping, de um ano atrás, em favor da liberalização e facilitação de comércio e investimentos, e corrigir as suas condutas distorcivas. Afinal, num eventual cenário de guerra comercial, todos os países buscarão se defender fechando mercado aos chineses.
Até lá, e até que os EUA voltem ao jogo, a UE será o garantidor do sistema multilateral. Os europeus darão um forte sinal de liderança se concluírem as negociações comerciais com o Mercosul. A importância desse acordo, neste momento, supera as divergências por algumas toneladas a mais ou a menos de carne.
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