- Folha de S. Paulo
A mulher do primeiro-ministro japonês fingiu que não falava inglês, fez bem
O secretário de Defesa dos Estados Unidos, James Mattis, desceu em Brasília e disse uma boa:
"Temos visto China e Rússia atuando dentro da América Latina. Existe mais de uma maneira de perder soberania no mundo. Isso ocorre não apenas com a violência, pode ser com presentes e grandes empréstimos."
Depois, teria dito ao ministro da Defesa, general Silva e Luna, que a posição americana em relação à Venezuela “é muito prudente” e que uma solução para a crise "deve ser liderada pelo Brasil".
Em junho, passou por Pindorama o vice-presidente Mike Pence e, no meio de um discurso, fez um apelo:
"Finalmente, para o povo da América Central, eu tenho uma mensagem para vocês, direto do meu coração e direto do coração do povo americano: Vocês são nossos vizinhos. (...) Não arrisquem suas vidas ou as vidas de seus filhos tentando vir para os Estados Unidos por um caminho dominado por traficantes de drogas."
Desde que Donald Trump entrou na Casa Branca a diplomacia americana tornou-se um jogo de cabra-cega. Problema deles. Um vice-presidente dirigindo-se ao povo da América Central a partir de Brasília ou um secretário de Defesa falando em “presentes e grandes empréstimos” como forma de alienação de soberanias é coisa de quem saiu de Washington sem fazer o dever de casa. A América Central não é aqui. Quanto aos presentes, quem teve negócios na Rússia foi Donald Trump.
Talvez Mattis não tenha lido os jornais americanos, mas a posição americana em relação à ditadura de Nicolás Maduro nada tem de prudente. Em fevereiro, o então secretário de Estado Rex Tillersondisse que "na história da Venezuela e dos países sul-americanos, às vezes os militares são o agente da mudança quando as coisas estão tão ruins e a liderança não serve ao povo. Se esse é o caso aqui, eu não sei".
James Mattis é um general da reserva do Corpo de Fuzileiros. Se ele sugeriu que o Brasil deve se meter na crise venezuelana depois de uma sugestão americana, seguiu a sugestão de algum soldado raso que anda fumando o que não deve.
É sabido que a China está investindo pesado em petróleo, mineração e energia no Brasil. Não será com frases bobas como a do secretário Mattis que esses negócios serão desestimulados. O mercado brasileiro está tão aberto aos chineses quanto aos americanos e se o país que tanto defendeu a globalização está hoje encantado pela “América Antes de Tudo” do doutor Trump, nada se pode fazer.
A ideia segundo a qual empréstimos e investimentos alienam soberania é velha, até para petistas radicais. Chineses ou americanos não podem levar de volta poços de petróleo, minas ou ferrovias.
Donald Trump arrumou encrencas com os seus maiores vizinhos, o México e o Canadá. Abriu uma guerra comercial com a China e deu à União Europeia uma inédita coesão, hostilizando-a. Fez isso tudo desmontando a burocracia do Departamento de Estado.
Um dos momentos marcantes do início da Guerra Fria ocorreu em 1945, 11 dias depois da posse de Harry Truman na Presidência dos Estados Unidos, quando ele deu um tranco no chanceler soviético Molotov. Sinalizou um novo caminho para sua política externa.
É provável que Akie, a mulher do primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, tenha indicado a melhor maneira para se lidar com a diplomacia de Trump. No ano passado ela sentou-se ao seu lado num jantar e o presidente comentaria que não conseguiu conversar com a senhora, pois ela não falava inglês. Falava e bem, mas não quis se aborrecer nem perder tempo.
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Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
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