- Folha de S. Paulo
Alterações em apresentação do biólogo Richard Vogt tiveram caráter claramente moralista
Paulistanos com mais de 50 anos hão de recordar-se do Cine Bijou, na praça Roosevelt. Não sei se por miopia dos porteiros ou por militância libertária dos proprietários, o Bijou deixava a molecada entrar nos filmes proibidos para menores de 18 anos, tendo sido importante para a formação cultural de toda uma geração.
Foi no Bijou que assisti a “Laranja Mecânica” (1971), de Stanley Kubrick, que levou vários anos para ser liberado pela censura brasileira e mesmo assim com patéticas bolinhas pretas que corriam atrás das partes pudendas dos atores na tentativa de encobri-las. O efeito era provavelmente o contrário do pretendido, pois as bolinhas só escancaravam o ridículo da censura em geral e a estultice do regime militar em particular.
Lembrei-me disso ao ler o noticiário sobre a censura sofrida pelo biólogo americano Richard Vogt. O pesquisador, que estuda tartarugas fluviais no Brasil há mais de 20 anos, havia preparado, para a cerimônia de um prêmio que receberia nos EUA, apresentação que trazia fotos de colaboradoras brasileiras vestindo biquínis enquanto manuseavam os quelônios.
Sem que Vogt fosse informado, a organização do evento mandou colocar tarjas escuras sobre as pesquisadoras. O prêmio concedido a Vogt foi na sequência cassado pela Liga Americana de Herpetologia, sob a alegação de que seu comportamento em relação às mulheres é inadequado.
Se existem acusações concretas contra Vogt, elas devem ser investigadas, mas vai contra o princípio da liberdade acadêmica interferir à revelia numa comunicação científica. Pior, as alterações tiveram caráter claramente moralista, dimensão que deveria estar excluída da ciência.
Que a ditadura militar de uma republiqueta sul-americana tenha recorrido às bolinhas para censurar é algo lamentável, mas não surpreendente. Que uma associação científica impulsionada pelo#MeToo tenha feito o mesmo é preocupante.
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