terça-feira, 26 de março de 2019

Edmar Bacha: Comentários ao texto de André Lara Resende*

- Valor Econômico

Neste texto, André traz para o Brasil duas controvérsias sobre política econômica que têm ocupado a atenção de economistas e políticos nos EUA recentemente. Trata-se da chamada “teoria moderna da moeda” e da discussão sobre o ônus real de dívidas públicas elevadas nos países desenvolvidos.

A primeira controvérsia refere-se às consequências da aplicação na prática da chamada “teoria moderna da moeda”. Confesso que nunca havia ouvido falar desta teoria antes de ler o artigo do André. Por ele provocado, fiz algumas pesquisas na internet, das quais tiro as seguintes conclusões:

A MMT, para usar a sigla em inglês (“modern money theory”), já existe há algum tempo, mas era visível apenas para quem descesse por assim dizer ao andar de baixo da academia americana. Pois seus proponentes militam em universidades de pouco prestígio e não publicam nas principais revistas acadêmicas.

Antes de debates recentes, que mencionarei a seguir, a única análise acadêmica sobre a MMT que me chamou a atenção foi feita por um economista americano que é uma espécie de guru dos nossos desenvolvimentistas. Trata-se de Thomas Palley, economista americano que se autointitula “pós-keynesiano”.

Para Palley, a MMT tem coisas boas e coisas novas. Mas as coisas boas para ele são antigas, pois há tempos fazem parte do repertório do keynesianismo -- aqui entendido como o uso de políticas econômicas expansionistas para combater a recessão e o desemprego.

Já as coisas novas da MMT, para Palley, são ruins, porque, com o argumento de que o governo não tem restrições financeiras, a MMT ignora qualquer barreira a políticas expansionistas. Segundo Palley, para os aderentes da MMT essas políticas poderiam ser praticadas sem limites, para gerar pleno emprego sem pressões inflacionárias.

Nisso, a MMT me faz lembrar o General Perón, dizendo ao presidente do Chile para ignorar os conselhos de economistas, porque a economia era igual um elástico, podia ser esticada à vontade, sem qualquer limite.

Palley também registra que é difícil dialogar com os proponentes da MMT porque, ao contrário do resto da profissão, eles não usam “modelos” (representações simplificadas da realidade, expressas em equações matemáticas) nem aceitam testes empíricos sobre suas hipóteses.

Por isso mesmo, como disse a princípio, o debate sobre a MMT até recentemente não chamava a atenção dos papas da profissão nos EUA.

Economistas ligados à MMT começaram a ser notados há três anos, quando uma de seus principais proponentes se tornou assessora de Bernie Sanders na última campanha presidencial dos EUA.

Eles ganharam grande proeminência este ano quando Alexandria Ocaso-Cortez, a nova estrela da esquerda do partido democrata nos EUA, passou a citar a MMT quando indagada sobre como iria financiar o chamado Green New Deal, o grande projeto para combater a desigualdade e as mudanças climáticas, por ela proposto juntamente com o Senador democrata Ed Markey.

Tendo sido assim chamados politicamente para prestar atenção à MMT, os papas da profissão partiram para um impiedoso ataque. O prêmio Nobel de economia, Paul Krugman, em sua coluna no NYT, comparou a MMT ao Calvinbol, um jogo maluco inventado pelos personagens da deliciosa história de quadrinhos, Calvin e Haroldo, jogo este cuja única regra é que não se pode repetir a mesma regra duas vezes.

Para não ficar atrás, em artigo no Washington Post, Larry Summers, presidente emérito da Universidade de Harvard e ex-Secretário do Tesouro norte-americano, chamou a MMT de a nova feitiçaria econômica (the new voodoo economics).

Já Kenneth Rogoff, professor titular de economia da Universidade de Harvard foi mais longe, em sua coluna no Project Sindicate: chama a MMT de “disparate monetário” (monetary nonsense) e chega a dizer que sua aplicação poderia desestabilizar todo o sistema financeiro global.

Felizmente, André não advoga as teses da MMT por inteiro. Reconhece o que chama de “restrição da realidade”, que se refere ao perigo de que déficits públicos podem levar à inflação na vizinhança do pleno emprego. O elástico que André advoga, ao contrário dos da MMT e do Perón, tem limites claros.
Mas, nesse caso, pelo que entendo, salvo melhor juízo, estamos de volta ao keynesianismo tradicional, com todas suas qualificações há oitenta anos discutidas na academia.

Portanto, minha preferência é por deixar a MMT de lado e concentrar atenção na segunda controvérsia que André traz dos EUA. Trata-se do ônus real da dívida pública elevada em países desenvolvidos. Essa controvérsia me parece mais interessante e sobre ela ressalto os seguintes pontos.

Ao contrário da MMT, a controvérsia nasce no andar de cima da análise econômica americana. Vem com a chancela de Olivier Blanchard, em seu discurso de despedida da presidência da Associação Econômica Americana, e de artigos acadêmicos recentes do mesmo Larry Summers que critica acidamente a MMT.

Em síntese, o que esses autores observam é que, desde 1980, há uma tendência nos países desenvolvidos para uma redução da taxa de crescimento do PIB – trata-se do que Summers chama de hipótese da estagnação secular.

Apesar dessa tendência, o que também se observa desde 1980 é que a taxa real de juros sobre a dívida pública dos países desenvolvidos tem ficado sistematicamente abaixo da taxa de crescimento do PIB desses países.

Por exemplo, num artigo recente, Summers e Rachel estimam que atualmente a taxa tendencial de crescimento do PIB dos países desenvolvidos está em torno de 2% a.a., enquanto que a taxa real de juros sobre a dívida pública desses países se situa em 0,5% a.a.

A implicação econômica desta constatação é importante. Suponha que o governo mantenha suas despesas (exceto os juros sobre a dívida pública) iguais a suas receitas, ou seja, mantenha um déficit primário igual a zero. Nesse caso, o déficit do governo, e portanto o aumento da dívida pública para financiar esse déficit, se deverá somente aos juros pagos sobre a própria dívida. Mas como a taxa de juros é menor que o crescimento do PIB, ao longo do tempo a relação entre a dívida e o PIB será decrescente.

Ou seja, na situação em que se encontram há tempos os governos dos países desenvolvidos – com uma taxa de crescimento do PIB maior do que a taxa de juros sobre a dívida --, até certo ponto eles podem ter um déficit primário – ou seja, gastar mais do que arrecadam – sem que isso implique um aumento da relação entre a dívida pública e o PIB.

Esse não é, infelizmente, o caso do Brasil. A taxa de crescimento do PIB nos últimos dois anos foi de apenas 1% e as projeções para os próximos anos não superam 2,5%.

Enquanto isso, a taxa real de juros sobre a dívida interna do Tesouro Nacional se situou em 5,4% a.a. no ano passado. A boa notícia é que o custo real das novas emissões de dívida feitas em 2018 ficou em 3,7% a.a., segundo o Tesouro Nacional (Os valores se referem às taxas pagas em 2018 sobre a dívida pública federal interna, de 9,37% na média e 7,64% nas novas emissões, deflacionadas pelo IPCA de 2018, de 3,75%. Cf. STN (2019), pp. 23-24.). Ainda assim, um valor superior ao crescimento esperado para o PIB.

Antes de concluir devo fazer parênteses para ressaltar que a taxa de juros relevante para nossa discussão é esta taxa paga pelo Tesouro, e não a taxa de juros que se infere das estatísticas do déficit público. É que esta última taxa incorpora o custo de carregamento dos ativos do governo, como reservas internacionais, empréstimos ao BNDES e outros bancos públicos, além de fundos e programas. Por isso mesmo, nas estatísticas do déficit público, que foi de 7,1% do PIB no ano passado, a conta de juros aparece com um valor de 5,5% do PIB, enquanto que o déficit primário aparece com apenas 1,6% do PIB.

Entretanto, a coisa muda de figura se, como seria correto, passarmos o custo do carregamento dos ativos do governo da conta de juros para o déficit primário, e deixarmos na conta de juros apenas o custo do pagamento da dívida do governo. Com esta mudança, a conta de juros baixaria para 3,7% do PIB enquanto que o déficit primário atingiria 3,4% do PIB – valores praticamente equivalentes entre si. Ou seja, nem só de juros vive nosso déficit.

Fechados os parênteses, minha conclusão é que, mantidas as condições atuais, devemos continuar a conviver com uma taxa de juros sobre a dívida pública que supera a taxa de crescimento do PIB. Por isso, é importante alcançar um superávit primário nas contas do governo, para evitar que a relação entre a dívida e o PIB, que já é alta para padrões de países emergentes, continue a crescer indefinidamente.

Mas também por isso, são estimulantes as sugestões do texto de André, para os economistas continuarmos a discutir formas não-inflacionárias de aumentar a taxa de crescimento do PIB e de reduzir a taxa real de juros no país.

*Comentários preparados pelo economista Edmar Bacha, um dos criadores do Plano Real, para o debate promovido pelo CEBRI: “Consenso e contrassenso: déficits, dívidas e previdência”, com André Lara Resende. Rio de Janeiro: Casa do Saber, 25/03/2019.

Referências
André Lara Resende, “Senso e contrassenso: déficit, dívida e previdência”. Rio de Janeiro: Texto para Discussão n. 47, IEPE/CdG, fevereiro 2019.

Edmar Bacha, “Nota sobre taxa de juros e dinâmica da dívida”. Em preparação.

Jason Furman e Larry Summers, “Who’s afraid of budget deficits? How Washington should end its debt obsession”. Foreign Affairs, 02/02/2019.

Kenneth Rogoff, “Modern monetary nonsense”. Project Syndicate, 04/03/2019.

Larry Summers, “The left’s embrace of modern monetary theory is a recipe for disaster”. Washington Post, 04/03/2019.

Lukasz Rachel e Larry Summers, “On falling neutral real rates, fiscal policy, and the risk of secular stagnation”. Brookings Papers on Economic Activity, Spring 2019.

Olivier Blanchard, “Public debt and low interest rates”. American Economic Association Presidential Lecture, 14/01/2019.

Paul Krugman, “Running on MMT (Wonkish). Trying to get this debate beyond Calvinball”. New York Times, 25/02/2019.

Secretaria do Tesouro Nacional, Dívida Pública Federal: Relatório Anual 2018. Brasília: STN, janeiro 2019, n. 16. Disponível em: www.tesourotransparente.gov.br.

Thomas Palley, “A critique of Modern Monetary Theory (MMT)”. Em: http://thomaspalley.com/?p=322. Postagem em 06/02/2013.

Thomas Palley, “Modern money theory (MMT): the emperor still has no clothes”. Em: http://thomaspalley.com/?p=393. Postagem em 17/02/2014.

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