Exposição no Itaú Cultural evidencia os planos do jornalista, torturado e morto pela ditadura, em se firmar como cineasta
Por Daniel Salles | Para o Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
SÃO PAULO - O portão de madeira, estreito e alto, exibia a figura de um menino pintada por uma criança. O sobrado na rua Oscar Freire, em São Paulo, havia abrigado uma escola de arte, e Vladimir e Clarice Herzog resolveram conservar a pintura quando se mudaram para o imóvel. Para entrar era preciso cruzar um corredor estreito, coberto por uma trepadeira que chegava a roçar a cabeça dos visitantes mais altos. Ele levava até um pequeno jardim onde o jornalista, sempre que podia, gastava parte do tempo cuidando das plantas.
As crianças dormiam e Clarice, sozinha na sala à noite, tentava aliviar com a leitura de um livro a angústia causada pela falta de notícias do marido, preso na manhã daquele sábado, 25 de outubro de 1975, depois de prestar depoimento no Doi-Codi, na Vila Mariana. Ao ouvir a campainha, ela deixou os óculos sobre o livro aberto ao lado do sofá e correu para o portão. Uma comitiva formada por Rui Nogueira Martins, diretor da TV Cultura - cujo departamento de jornalismo era chefiado por Vladimir, o Vlado -, Armando Figueiredo, assessor de imprensa da Secretaria de Cultura, e alguns outros. Todos de paletó e gravata, aguardavam por Clarice.
O grupo esperava outro ambiente. "Eles sentaram, mas não falavam nada, só repetiram que as coisas se complicaram", registrou ela. "O que mais constrangia era o terrível contraste entre a notícia brutal que eles tinham a dar, de uma morte brutal, e a situação de paz e tranquilidade que encontraram naquela sala", escreveu no livro "Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil" (Global Editora) o jornalista Fernando Pacheco Jordão, então diretor cultural do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo. Os rodeios das visitas bastaram para ela intuir o pior. "Mataram o Vlado", ela gritou de repente.
A tortura e a morte do jornalista, que completam 44 anos em outubro, nas dependências do órgão de inteligência e repressão da ditadura militar, têm papel restrito na "Ocupação Vladimir Herzog", que se espalha pelo segundo subsolo do Itaú Cultural, em São Paulo, a partir de quarta-feira. Na exposição, a 46ª de uma série que já homenageou o arquiteto Paulo Mendes da Rocha e o crítico literário Antonio Candido (1918-2017), entre dezenas de outras personalidades da área cultural, o assassinato e a mirabolante versão do suicídio, por enforcamento, são relembrados somente por meio de documentos oficiais.
O atestado de óbito baseado no laudo assinado pelo legista Harry Shibata, que apontava asfixia por enforcamento, é um deles - o documento foi corrigido em 2012. O mais recente é a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), proferida em julho do ano passado, reconhecendo o assassinato de Vlado, elevado a crime contra a humanidade, e responsabilizando o Estado brasileiro, inclusive pela falta de investigação e punição. A exposição foi organizada em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, que defende a memória do jornalista e milita em prol da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
Observada em conjunto, no entanto, a "Ocupação Vladimir Herzog" tem como objetivo principal desvendar a trajetória dele antes de sua morte, aos 38 anos. "Todo mundo conhece o caso Herzog, mas não a pessoa que ele foi ou os trabalhos que realizou", diz Claudiney Ferreira, gerente do núcleo de audiovisual e literatura do Itaú Cultural e um dos curadores da mostra. Jornalista de formação, ele cursava a faculdade quando o caso veio à tona.
O documento mais antigo é a lista de passageiros da viagem que o navio Philippa fez em 1946 entre Gênova, na Itália, e o porto do Rio de Janeiro. Nela lê-se o nome de Vlado Herzog. O prenome Vladimir, que ele considerava mais palatável aos nossos ouvidos, seria adotado mais tarde, quando se naturalizou brasileiro. Aos 10 anos, o garoto nascido em Osijek, na antiga Iugoslávia, hoje território croata, desembarcou no Brasil com a família judaica em busca de um lugar a salvo da perseguição promovida pelo nazismo.
Em uma carta endereçada a ele, de 1968, Zigmund Herzog, o pai do jornalista, resume os apuros vividos pela família durante a Segunda Guerra Mundial. "Você já tinha passado tantos sustos", diz ele em um trecho. A carta pode ser ouvida na mostra na voz do escritor Milton Hatoum. A atriz Eva Wilma declama outra, a que a mãe de Vlado, Zora Herzog, redigiu em 1978 para o juiz Márcio José de Moraes. Nela, agradece o parecer por meio do qual o magistrado instou o Estado a apurar o crime e apontar os responsáveis.
A trajetória jornalística de Vlado é um dos pilares da mostra. Na imprensa escrita, ele se destacou sobretudo no jornal "O Estado de S. Paulo", em que trabalhou no fim da década de 50, e na extinta revista "Visão", em que começou como colaborador e chegou a editor das páginas culturais. Nessa última publicação, foi colega do escritor Zuenir Ventura, que elogia a competência de Herzog como editor. Além de escrever sobre cultura, o futuro diretor de jornalismo da TV Cultura ficou conhecido pelos artigos sobre pesca.
Morto o jornalista, convocado ao Doi-Codi para prestar esclarecimentos sobre sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro, foi-se também o cineasta. Pouco conhecida, a atuação de Herzog atrás das câmeras e seu fascínio pelo cinema, em especial pelos documentários, são realçados na exposição, em cartaz até 20 de outubro. "Quando foi morto, ele estava pronto", diz Clarice, a respeito dos planos do marido de se firmar como cineasta.
Em 1963, depois de participar de um curso de cinema ministrado pelo documentarista sueco Arne Sucksdorf (1917-2001), concluiu sua única obra audiovisual. Trata-se do curta-metragem "Marimbás", documentário a respeito de um grupo que sobrevivia da pesca no Posto 6, em Copacabana. Como pesquisador e roteirista, ajudou a tirar do papel o longa-metragem "Doramundo" (1978), de João Batista de Andrade. Nas filmagens de "Viramundo" (1965), de Geraldo Sarno, documentário sobre a chegada de nordestinos em São Paulo, atuou como assistente de som.
Adorava marcar posições no cinema. Num artigo publicado no extinto "Jornal do Commercio", do Rio de Janeiro, reproduzido na exposição, comparou a produção cinematográfica dos cariocas e a dos paulistanos e concluiu que os primeiros faziam filmes para o povo; os últimos, apenas para a elite. Numa entrevista para a TV Cultura, que pode ser vista no YouTube, defende a dublagem de filmes estrangeiros no Brasil, em razão dos altos índices de analfabetismo. Na época de sua morte, trabalhava no roteiro de um documentário sobre Antônio Conselheiro (1830-1897) e a Guerra de Canudos.
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