- Folha de S. Paulo
Cada expressão empregada no debate jurídico sobre Lula remete à sorte dos Silva
Luiz Inácio foi Silva, mas isso faz muito tempo. Na sentença original, Sergio Moro determinou que, "em razão da dignidade do cargo exercido", sua cela seria uma "espécie de sala de Estado-maior". A juíza Carolina Lebbos, revendo a orientação de execução penal, mandou transferi-lo para "cela especial" em alojamento coletivo. A defesa divergiu, alegando que Lebbos "subtraiu" ao condenado o direito de ficar "separado dos demais presos, sem qualquer risco para a integridade moral ou física". Cada expressão empregada no debate jurídico remete à sorte dos Silva —mas fingimos que não.
Aqui, sugiro um exercício de abstração. Vamos ignorar, apenas nos limites desse texto, que sobre a sentença condenatória pesa a sombra do conluio entre Estado-julgador e Estado-acusador e, ainda, que a ordem de transferência emitida por Lebbos inscreve-se na agenda política do "Partido dos Procuradores". Em nome dos que nunca deixaram de ser Silva, convido o leitor a concentrar sua atenção na mensagem emanada dos juízes Moro e Lebbos e dos advogados de Luiz Inácio. Eles estão dizendo que cometemos o maior dos crimes ao punir os crimes dos Silva.
A Lei da República reza que somos todos iguais perante a lei. Mas um emaranhado de normas entalhadas no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal distingue categorias de privilegiados com direito à "prisão especial" durante o período de prisão cautelar. Além disso, juízes cuidam de fixar distinções singulares, infralegais, que se destinam a segregar, durante o cumprimento da pena, as "pessoas importantes" dos "demais presos". Os "homens bons" reconhecem seus iguais: a eles, a "sala de Estado-maior" ou, no mínimo, a "cela especial"; aos Silva, o inferno, "seu habitat natural" (apud Jair Bolsonaro).
As sociedades de homens livres encontram seus espelhos indiscretos nos sistemas penitenciários que produzem. Nossa população carcerária, a terceira do mundo, aumentou 81% entre 2006 e 2016. Entre os quatro países com maior quantidade de presos, somos o único que ampliou o encarceramento nos últimos 20 anos. Temos mais de 725 mil encarcerados, num sistema com menos de 370 mil vagas.
Só 11% dos presos foram condenados por assassinatos. Mais de um quarto dos homens encarcerados e quase dois terços das mulheres caíram nas malhas da Lei de Drogas. São, como regra, pequenos traficantes de esquina: o serviço de transporte do pó branco servido nas festas dos bacanas. Silvas.
Na população carcerária, cerca de 290 mil são presos provisórios. Em média, 37% deles (107 mil) serão absolvidos ou condenados a penas alternativas. Quase todos chamam-se Silva. Os que têm outros nomes não vão para Altamira (PA), Alcaçuz (RN), Monte Cristo (RR), Anísio Jobim (AM), Pedrinhas (MA) ou tantas outras penitenciárias controladas por facções criminosas e assoladas por massacres periódicos.
"Direitos humanos para humanos direitos" —a doutrina política dos milicianos é aplicada à risca no Brasil penitenciário. A desigualdade econômica legal converte-se em desigualdade jurídica ilegal na transição da liberdade para a prisão. Atrás dos muros e cercas eletrificadas dos complexos prisionais, pulsa o país da fazenda, da Casa-Grande e da escravidão. Os Silva conhecem essa história; nós, não. É que, na pior das hipóteses, como prescreveu a juíza Lebbos, corremos o risco de ir para "celas especiais, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana".
O STF acolheu a reclamação de Luiz Inácio, rejeitando a subordinação das regras de execução penal do sentenciado às conveniências da campanha midiática do Partido dos Procuradores. Mas já não passa da hora de olhar para os simplesmente Silva, sem rosto, nome, patrimônio ou "dignidade do cargo"?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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