quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Ascânio Seleme: Bolsonaro, líder parlamentarista

- O Globo

Na votação da Previdência, presidente já foi colocado de lado

Nunca um presidente da República trabalhou tanto pelo parlamentarismo quanto Jair Bolsonaro. Claro que de modo involuntário, Bolsonaro adora mandar. Por essa razão também, por gostar de mandar mas não saber exatamente como fazê-lo, é que cada vez mais o Congresso vai ganhando importância em detrimento do Palácio do Planalto. Na primeira experiência de entendimento com o Congresso, na votação da reforma da Previdência, Bolsonaro já foi colocado de lado, e a bola rolou sem sua interferência. Foi assim na Câmara e está sendo assim no Senado.

O presidente faz tanta lambança ao lidar com o poder que a cada dia parece mais inadequado para liderar o país. Um líder não despreza a nação como faz Bolsonaro. Eleito, a primeira medida deveria ser a de atrair os que lhe fizeram oposição nas urnas. Bolsonaro não apenas se lixou para estes como se afastou até mesmo daqueles que votaram nele apenas para evitar o outro. E assim segue desfazendo a política. Há algumas semanas rodou na internet uma fake dando conta de que o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, e o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, elaboravam “um golpe parlamentarista”. Era bobagem. Mas uma hora poderá deixar de ser.

O Brasil já foi parlamentarista uma vez para evitar dar a um vice-presidente o poder do titular que renunciara. João Goulart só tomou posse, com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, depois de aprovada uma emenda parlamentarista. A história do Brasil deveria servir de lição. Mas o governo Bolsonaro não gosta de lições, julga-se pleno. Goulart era um político de esquerda. Temia-se que, detendo o poder, transformasse o Brasil num satélite soviético. Por isso, ele quase não assumiu, e só o fez quando o Congresso lhe confiscou o poder. Depois acabou deposto, mas esta é outra história.

Hoje, temos um presidente de extrema direita, anacrônico, que se orgulha do seu anacronismo. E, mais do que isso, não passa um dia sequer sem exercitar com todas as cores e todos os verbos essa condição. O grave nesse caso nem são as bobagens que repete sempre que pode. O que importa é que ele atrapalha, e muito, o governo do Brasil, pátria amada. Nesse episódio das queimadas na Amazônia, deixou de cabelo em pé mais da metade de seu Ministério. Apenas os que o seguem de maneira cega e incondicional repetiram ou endossaram sua retórica.

O presidente também desrespeita instituições, atropela subordinados, agride chefes de Estado estrangeiros e já tentou legislar sem o Congresso. Seus ataques ao Judiciário e ao Legislativo passaram muitas vezes do limite democrático, e só foram interrompidos graças à boa vontade dos seus contendores. Suas broncas em ministros resultaram na demissão de uma meia dúzia em oito meses, e o vexame a que submeteu Sergio Moro entrará para a história. O ministro será lembrado como o maior engolidor de sapos de todos os tempos. Nem o ex-senador Cristovam Buarque, que Lula demitiu do Ministério da Educação pelo telefone, foi tão humilhado.

Já tratar com desrespeito o presidente francês Emmanuel Macron resulta de um capricho. Nenhum problema em confrontar Macron. Cabia classificar o seu discurso como tentativa de se recuperar de um mal desempenho político ou como resposta a cobranças de agricultores franceses. Podia até dizer que o francês deveria cuidar do seu quintal, que do nosso ele se ocuparia. O que Bolsonaro não podia era desrespeitar o líder francês e sua mulher. Tampouco podia afrontar Noruega, Alemanha e G-7, que há anos ajudam o Brasil. Em três semanas, Bolsonaro jogou pela janela quase meio bilhão de dólares.

Mas foi ao tentar mudar lei por decreto, como no caso da flexibilização da posse e do porte de armas, que Bolsonaro provou que não consegue ser do tamanho que o cargo exige. Foi um erro grosseiro, do qual ele depois pediu desculpas e disse que foi um equívoco. Ok, presidente. Mas duvido que alguém consiga ver equívoco mais absurdo do que esse. Mudar lei por decreto, francamente. Parecia aquela coisa do “se colar, colou”. Por isso, o que outro dia era fake, amanhã pode brotar como alternativa política.

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