- Folha de S. Paulo
A gritaria e a irrelevância se tornaram o novo normal; o que me surpreende é a figura do chefe de Estado como protagonista da algazarra digital
A tormenta ainda não passou, mas já é possível retirar algumas lições da crise vivida pelo país. A primeira delas é que sabemos muito pouco sobre o que exatamente aconteceu na Amazônia, nos últimos meses.
A procuradora Raquel Dodge fala em uma “ação orquestrada longamente cultivada para chegar a este resultado” e há informações bastante vagas sobre sindicalistas e fazendeiros promovendo o “dia do fogo”. Tudo soa um tanto inverossímil.
Há perguntas reais que precisam ser feitas. Houve relaxamento da fiscalização, por parte de órgãos de Estado? Trata-se de um problema de governança, de omissão criminosa, ou um reflexo perverso do quase “shutdown” da máquina pública, provocado pelo esgotamento fiscal (o mesmo que levou ao corte nas universidades, ao virtual fim do investimento público e vem paralisando a máquina federal).
É evidente que, para os donos da verdade de sempre, já está tudo explicado. Para quem detesta o governo, o que houve foi um “sucateamento do Ibama”, como li em uma publicação aparentemente séria. De uma jornalista influente, li que tudo foi causado pelas falas do presidente, que subliminarmente “incentivaram” os madeireiros e agricultores a tacar fogo na mata.
O governo não fica atrás no campeonato de chutes na Lua. Tudo começou com a negação pura e simples dos dados do Inpe. Nada disso teria acontecido se o governo tivesse simplesmente levado os dados a sério e agido com rapidez. É exatamente para isto que temos um governo.
O que veio depois é apenas loucura. Da culpabilização genérica das ONGs, feita por Bolsonaro, até a criativa provocação de que voltando as demarcações de terras indígenas “o fogo acaba na Amazônia daqui a alguns minutos”.
Vejo nisso tudo uma espécie de fracasso coletivo. A constrangedora incapacidade, nestes tempos de cólera, de se fazer um debate minimamente racional sobre um tema complexo como este.
É um quadro semelhante, ainda que em outra escala, ao que vem acontecendo na educação e no tema dos cortes orçamentários. A truculência de um lado, a irracionalidade e oportunismo político, de outro.
Para quem quiser aprender alguma coisa, a crise nos dá uma aula prática sobre os riscos da democracia digital. Tenho dito e repito aqui: a internet deu poder aos cidadãos e fez explodir o nível de informação disponível e transparência do sistema político, mas definitivamente envenenou a democracia.
O ruído permanente, as fotos fake, o mapa mostrando a Amazônia queimando até o Paraguai, o achismo generalizado, a retórica de fim de mundo. Tudo vindo não apenas do cidadão comum, mas por parte de quem deveria lidar profissionalmente com a informação. Vai aí um quadro sem volta.
A gritaria e a irrelevância se tornaram o novo normal da democracia. O que me surpreende, neste episódio, é a figura do chefe de Estado como protagonista da algazarra digital. O líder latino de traço populista, de um lado, e o líder europeu de centro, aparentemente “racional”, de outro. Suspeito que não deveria me surpreender.
Por último, fica uma lição sobre o comportamento do presidente Bolsonaro, que vai se afirmando, na boa definição de J.R. Guzzo, como uma “máquina de produzir atritos, problemas de conduta e confusões inúteis”.
Não há manual, na ciência política, para explicar onde tudo isso termina, e não se trata aqui de imaginar que teremos, em algum momento, um presidente politicamente correto.
Não elegemos Justin Trudeau, elegemos Jair Bolsonaro. O ponto é que tudo passou um pouco do limite.
Para os apoiadores incondicionais do presidente, não há problema nenhum em seu estilo trombador e suas piadas de gosto discutível, dado que tudo que o grande líder faz está, de antemão, justificado. Para seus odiadores profissionais, tudo já se perdeu.
Como bem disse Noam Chomsky, em uma divertida entrevista a estaFolha, Bolsonaro e Trump são piores que Hitler, que só queria “matar todos os judeus”. Eles querem é “matar toda a sociedade, destruir tudo e ter lucro”. Não entendi exatamente como ter lucro, depois de matar todo mundo, mas deu para perceber o tom da crítica.
Os dois grupos são perfeitamente iguais e não valem nada para o bom debate público, mas a questão prossegue no ar: qual é exatamente o custo político que teremos ainda que pagar pelo destempero e pela instabilidade permanentemente provocada pela retórica presidencial.
E quem sabe, numa versão mais otimista da mesma questão, dirigida não apenas para o presidente: há alguma chance de que esta crise nos ensine alguma coisa?
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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