- Valor Econômico
Comandante em chefe oferece a rota da insubordinação
Última palavra na audiência que mobilizou a comissão especial da Câmara que analisa o projeto de lei que muda a proteção social e reestrutura a carreira militar, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, deu tom de apelo à ponderação que marcou suas intervenções na última terça-feira: "Queria passar aqui a sensação de responsabilidade que eu e os comandantes temos como representantes de 770 mil cabeças da família militar que congrega 41 milhões de brasileiros e estão proibidos de se manifestar ou fazer greve".
O ineditismo daquela audiência pública, com a presença dos três comandantes das Forças Armadas, foi resumido pelo general Edson Leal Pujol: "Tenho 48 anos de Forças Armadas e, em toda minha vida militar, nunca nos foi dada a oportunidade de vir debater nossa carreira no Congresso".
A dimensão da responsabilidade foi dada, quatro meses antes, numa outra audiência, igualmente inédita, na Casa vizinha. Convocada pelo senador Paulo Paim (PT-RS), a audiência reunira porta-vozes de entidades que se dizem representantes de militares e de seus familiares, aquelas a quem o capitão Jair Bolsonaro deve seus sete mandatos de deputado federal e que acabariam por constituir o seu mais arraigado colégio eleitoral de 2018.
A fatura foi exibida sem rodeios. Duas entidades de esposas de militares se fizeram representar com críticas ao projeto em tramitação. Com a veemência do capitão Jair Bolsonaro, Kelma Costa, presidente de uma delas, atirou primeiro: "Estamos à beira do abismo e continuam nos tratando como se fôssemos ralé".
Ivone Luzardo, presidente da outra, agradeceu a Deus por estar presente, esconjurou o Foro de São Paulo e o comunismo e lembrou o que elas fizeram nos verões passados: "Fomos para a rua promovê-lo, ele é o nosso presidente. Quero pedir a ele que tenha os olhos voltados para os militares, especialmente os que estão na base e passam fome...Estamos aqui para defender seu governo antes de mais nada".
Entre uma audiência e outra, aconteceu, em Brasília, aquele que foi chamado de "1º Congresso Nacional de Associações Militares" e cujo alvo foi o projeto de lei enviado pela Defesa. Na véspera do encontro, o comandante do Exército divulgou uma nota sob o título "Normas de conduta aplicadas aos militares". Nela, lembrou que aos militares, da ativa e da reserva, está vedada sindicalização, greve e manifestações de caráter reivindicatório ou político.
O que está em jogo é a única vantagem que as Forças Armadas podem vir a tirar de governo que as expôs como em nenhum momento desde a redemocratização. O PL 1645 corrige distorções como aquela que permite a um servidor da Receita, da Polícia Federal ou do Itamaraty entrar no serviço público com um salário superior àquele do oficial que chega ao topo de sua carreira militar.
Para isso, reajustou adicionais em função de cursos feitos ao longo carreira, da dedicação exclusiva e da realocação dos militares e de suas famílias pelo território nacional. Recupera parte das prerrogativas limadas pela medida provisória de 31 de dezembro de 2000, denominada na cúpula da corporação como o maior sacrifício já oferecido por uma carreira pública para o ajuste fiscal.
Em contrapartida, os militares, da ativa e inativos, terão suas alíquotas de contribuição para os sistemas de pensão e de assistência médica elevadas de 11% para 14%. E os pensionistas, que hoje só custeiam a assistência médica, passarão a contribuir como os da ativa e da reserva. O tempo de serviço passa de 30 para 35 e ficam excluídos do rol de dependentes pais, avós, sogros, irmãos e sobrinhos.
Os militares que não fizeram as escolas de formação e que, portanto, não são oficiais, reclamam de terem sido onerados pela reforma da proteção social sem o bônus da reestruturação de carreira. Se um 1º tenente, que está na base do oficialato, ganha R$ 8,7 mil, um 3º sargento não oficial chega ao fim de seu serviço nas Forças Armadas com menos da metade deste soldo.
Não bastassem reclamações que, em outros momentos, fizeram tremer as palafitas da democracia brasileira, os generais foram surpreendidos pela carona que os policiais militares, insatisfeitos com a reforma da Previdência, querem pegar no seu projeto. Contam com o beneplácito, segundo os depoimentos colhidos na audiência pública de abril, de Bolsonaro. A relação ficou ainda mais azeitada depois da posse de um major da PM do Distrito Federal, Jorge Oliveira, como ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência.
A reclamação tenderia a ser colocada nos últimos escaninhos das preocupações dos quartéis fosse outro o presidente da República. Desde a posse, Jair Bolsonaro não perde uma solenidade militar. Em menos de um mês foi a duas formaturas de sargentos. Numa cerimônia de aniversário do Comando de Operações Especiais do Exército, adentrou o pantanoso terreno dos cursos, a que apenas um terço da Arma tem acesso: "Não cheguei até lá, tentei por duas vezes fazer o curso de comandos mas nos exames preparatórios, que não foram os físicos, fui deixado para trás".
O ajuste de contas do capitão começou lá atrás. Depois do segundo turno do ano passado, o então comandante do Exército, general Villas Boas, fez uma cerimônia para dar a Bolsonaro o diploma do curso que lhe havia sido negado, por insubordinação, na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais.
Numa outra solenidade, de entrega de brevês de paraquedistas, pôs o dedo numa ferida aberta. Citou o general Acrísio Figueira, comandante da escola quando lá estudou: "Tivemos um momento bastante tenso entre nós, mas preservou a lealdade e a verdade. Suas palavras, naquele momento, fizeram um marco na minha vida. Esse marco fez com que um paraquedista alcançasse a Presidência da República".
Em 3 de setembro de 1986, depois de mandar prender o capitão que enfureceu o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, com um artigo publicado na 'Veja' em que reclamava dos soldos, o general Acrísio disse à "Folha de S.Paulo": "Apesar de ter ferido os regulamentos, seu artigo me pareceu ponderado e sem críticas a seus superiores".
Trinta e três anos depois, Bolsonaro voltava à mesma escola para dizer aos novos paraquedistas que sem aquela insubordinação não teria virado comandante em chefe. Com uma provocação deste calibre, nenhum general precisa de inimigo na fronteira da Amazônia.
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