sábado, 28 de setembro de 2019

Oscar Vilhena Vieira* - Sísifo e a lei

- Folha de S. Paulo

Ao Supremo cumprirá colocar limite às paixões da Lava Jato, sem debilitá-la

Após enganar a morte pela segunda vez, Sísifo —considerado o mais astuto dos mortais— foi condenado pelos deuses a eternamente rolar uma rocha até o alto de uma montanha, para depois vê-la retornar ao ponto de partida.

Para Albert Camus, Sísifo é o herói do absurdo, tanto por se deixar tomar pelas paixões que o levaram a enfrentar os deuses, como pelo suplício cruel e destituído de sentido que esses deuses lhe impuseram.

Muitos dos que cerraram fileiras em torno da Lava Jato estão se sentido como Sísifo, condenados a testemunhar a inutilidade do trabalho penosamente realizado.

Nas últimas semanas o Congresso Nacional aprovou uma nova lei de abuso de autoridade que coloca inúmeros limites a condutas que foram importantes para o sucesso da operação.

O presidente Bolsonaro, por sua vez, nomeou um procurador-geral da República disposto a conter os excessos da Lava Jato.

Por fim, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal anunciou que inúmeras sentenças proferidas no contexto da Lava Jato poderão ser eventualmente anuladas, por não terem assegurado —no momento da apresentação das alegações finais— o contraditório e a ampla defesa dos réus delatados.

A Operação Lava Jato foi herdeira do mensalão, em que o Judiciário se arvorou o papel de protagonista na luta contra a corrupção.

Também foi beneficiária de uma crescente autonomia e ousadia do Ministério Público e da Polícia Federal. Seu maior trunfo, no entanto, foi o emprego sistemático das delações premiadas, introduzidas no sistema jurídico brasileiro em 2013.

Por meio dessa poderosa arma, o Estado investigador pode chegar às profundezas dos esquemas de corrupção eleitoral praticados no Brasil, jamais alcançadas pelo tradicional direito penal.

O fato é que a lei 12.850/13 subverteu toda a lógica do direito criminal, baseada na estrita legalidade, criando enormes zonas cinzentas, onde se deve realizar a negociação entre o Estado acusador com o réu colaborador.

Esse espaço legalmente opaco foi sendo preenchido com grande voluntarismo e eventuais arbitrariedades pelos operadores da Lava Jato, sob os olhares omissos dos tribunais superiores.

Diferentemente de outros países onde as diversas formas de colaboração e barganha criminal foram sendo testadas em milhares de casos ordinários e lapidadas pelos tribunais, aqui a ferramenta foi inaugurada num caso de enorme complexidade e máxima centralidade, desestabilizando o sistema político.

A retaliação do corpo político era, assim, inevitável. A reação do Supremo também. As revelações do The Intercept Brasil, a transferência do ex-juiz Moro para o governo que foi o principal beneficiário da operação, além de vícios jurídicos na condução da Lava Jato, abriram um enorme flanco para a impugnação de atos e um maior controle sobre as instituições jurídicas.

Isso não significa que o combate à corrupção esteja necessariamente condenado ao destino absurdo de Sísifo.

Ao Supremo cumprirá, na próxima semana, a difícil tarefa de colocar limites às paixões que pautaram diversas condutas dos operadores da Lava Jato, sem, no entanto, desabilitar aquilo de positivo e importante que foi realizado.

Creio que o segredo esteja no modo como o tribunal irá modular a sua decisão, garantido um novo julgamento apenas àqueles que foram efetivamente prejudicados no processo, como propôs a ministra Cármen Lúcia. Caso isso não seja feito, estaremos retrocedendo.

*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

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