sábado, 28 de setembro de 2019

Marcus Pestana - São vidas, não são estatísticas

- O Tempo (MG)

Certa vez li uma crônica de Marina Colasanti que me marcou profundamente onde ela concluía com uma interpelação: “A gente se acostuma, eu sei, mas não devia”. Banalizar coisas essenciais na vida que estão erradas é o caminho mais curto para a insensibilidade e a inércia.

Uma das grandes tragédias do Brasil contemporâneo se encontra no campo da segurança pública. A sociedade brasileira exige respostas firmes e consistentes à escalada da violência. Em algum momento, perdemos o controle da expansão do crime organizado. E o primeiro passo, creio, é não esconder dramas familiares nascidos de eventos violentos atrás de estatísticas e análises frias. A indignação com a perda de vidas não deve ser aplacada e sim motivar a construção de políticas públicas inteligentes que deem conta de mudar este triste panorama.

Muito menos estabelecer uma competição mórbida, cruel e sem sentido, entre perda de vidas de cidadãos derivada de “balas perdidas” e policiais no exercício de suas funções. Do lado de cá devem estar unidos governos, forças policiais e população contra o verdadeiro inimigo, o crime organizado.

O Rio de Janeiro é uma vitrine e uma caixa de ressonância do país.

A morte de Ágatha Vitória Sales Félix, de apenas 8 anos, no Complexo do Alemão, comoveu o país. Uma doce e alegre criança, que era uma aluna nota dez, gostava de balé, de desenhar flores e pássaros e espalhar seus desenhos pelas paredes de sua casa. Ágatha morreu com tiro de fuzil disparado por um policial. “A mamãe está aqui, fica com a mamãe”, era a prece que sua mãe fazia a caminho do Hospital. A diretora da escola previa um futuro brilhante para Ágatha. O avô desabafou: “Era filha de trabalhador. Ela falava inglês, tinha aula de balé, era estudiosa. Não vivia na rua não”.

De outro lado, em menos de 24 horas no Rio, morreram em serviço, em confronto com o tráfico, dois policiais da PM. O cabo Leandro de Oliveira tinha 39 anos e o soldado PM Felipe Brasileiro Pinheiro, apenas 34 anos. Os servidores públicos militares saem de casa para vivenciar, dia após dia, situações de verdadeira guerra. E as famílias deles merecem a mesma solidariedade que nos dominou com a morte da menina Ágatha. Um dado estarrecedor é que perdemos, em 2018, no Brasil, mais policiais que cometeram suicídio, foram 104 vidas perdidas, do que em decorrência de confronto nas ruas, 87 policiais mortos. Isto dá a dimensão do estresse profissional a que estão submetidos os servidores públicos da segurança.

E de nada adiantam bravatas ou discursos radicais de autoridades que retroalimentam a violência. Não é eficaz simplesmente agravar penas e lotar ainda mais um sistema prisional falido, verdadeira escola do crime. Não resolve uma política de confrontação pura e simples, que resulta muitas vezes em perda de vidas inocentes. Ao lado da necessária ação repressiva, é preciso um verdadeiro “choque de acesso às políticas públicas” nas comunidades pobres, a efetiva implantação do SUSP, o controle nas fronteiras do tráfico de armas e drogas, o aprimoramento do trabalho de inteligência e o estrangulamento dos mecanismos de financiamento do crime organizado.

A gente se acostuma, mas não devia. A alguns líderes do poder público brasileiro deixo uma opinião: menos palavras vãs e mais ações concretas. São vidas perdidas, não estatísticas.

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