- Folha de S, Paulo
Ambientalistas escolhem caminho do simplismo e se fecham num gueto sueco
Greta Thunberg, 16, sueca, filha de um ator e uma cantora de ópera, nunca passou fome, sempre tomou banho quente e conectou-se à internet antes de aprender a ler.
No seu discurso na ONU, ela acusou os governos do mundo inteiro de "roubar meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias" sobre as mudanças climáticas. Greta, porém, não representa a maior parte dos adolescentes do planeta, nem os adolescentes de tantas gerações anteriores que experimentaram carências vitais.
A história pessoal e familiar ajuda a decifrar o tom chantagista de seu discurso. Há quatro anos, movida por uma obsessão precoce pelo aquecimento global, Greta convenceu seus pais a se tornarem veganos e a renunciarem a viajar de avião, o que cortou a carreira internacional de sua mãe. Para a persuasão familiar, contribuiu o diagnóstico de que a pré-adolescente sofria de um transtorno do espectro do autismo. Da família para o mundo —no palco iluminado da ONU, Greta realiza um salto acrobático destinado a fracassar.
"Por mais de 30 anos, a ciência tem sido cristalinamente clara." Três décadas —a eternidade para quem tem 16 anos— são nada na escala do tempo geológico e um intervalo ínfimo na história humana. A tendência de aquecimento global inscreve-se tanto no ciclo natural do interglacial em curso, iniciado 15 mil anos atrás, quanto na emergência da economia industrial, em meados do século 19. O consenso científico diz que a contribuição humana é decisiva. As mesmas tecnologias e modos de produzir que alçaram a maior parte da humanidade acima do patamar da fome crônica provocaram a elevação das emissões de gases de estufa.
A história recente pode ser contada a partir de um gráfico de temperaturas globais. As devastações das duas guerras mundiais retardaram o aquecimento. A ausência de guerras gerais está na base da anomalia positiva de 0,17ºC por década registrada desde 1970. A ascensão da China é fator crucial para entender a dramática anomalia positiva de 0,43ºC verificada entre 2008 e 2017. A nova potência tornou-se o maior emissor absoluto de gases estufa --e, ao mesmo tempo, tirou centenas de milhões de crianças da miséria.
As Gretas chinesas, asiáticas, africanas, latino-americanas não têm motivos para dizer que seus sonhos e infâncias foram "roubados" pela economia de alto impacto climático.
A ECO-92, o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris são mais que "palavras vazias". O discurso de Greta flutua acima da história, ignorando os intercâmbios econômicos envolvidos na equação do desenvolvimento sustentável, e paira além da política, colocando no saco genérico de "traidores" os governos engajados em custosos programas de transição energética e os líderes que, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, se escondem nas profundezas do obscurantismo. O mundo deve se tornar vegano agora mesmo, adotando a meta de saldo zero de emissões em uma década, algo que só estaria ao alcance de uma ditadura totalitária global.
O movimento ambientalista escolheu dirigir-se ao mundo pela voz de Greta, numa tática que busca circundar um debate complexo entre adultos. "Como vocês ousam?", exclamou a jovem na ONU, quando a pergunta certa é: "Quem ousará contestar as palavras emanadas de uma adolescente pura que clama apenas pelo belo e pelo justo?". A fuga da política, contudo, convida a política a ressurgir, pela porta do populismo.
A ciência está certa ao alertar para a urgência das mudanças climáticas --e as principais vítimas do fenômeno serão as atuais crianças pobres dos países mais pobres. Mas, ao escolher o caminho do simplismo, do fundamentalismo climático, da utopia pré-política, o movimento ambientalista fecha-se num confortável gueto sueco, renunciando ao debate efetivo que se trava contra o "soberanismo" negacionista.
Com quantas Gretas se faz um Ricardo Salles?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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