segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Bruno Carazza* - Mudou, mas continuou quase igual

- Valor Econômico

Corporações têm peso na atuação parlamentar, apesar da proibição de doações de campanha de empresas

Em 2010, numa decisão apertada (5 a 4), a Suprema Corte norte-americana decidiu que doações de campanha são uma forma de expressão das preferências eleitorais dos indivíduos e, por isso, não deveriam ser objeto de qualquer forma de restrição ou proibição estatal. Amparando-se no princípio da liberdade de discurso inscrito na Primeira Emenda à Constituição, o órgão máximo do Judiciário nos EUA derrubou uma série de dispositivos de uma lei de 2002 que impunha limites a doações de empresas, sindicatos e organizações para candidatos e partidos nas eleições americanas.

Para quem acredita que idiossincrasias e mudanças bruscas de entendimento são uma exclusividade do STF brasileiro, a mesma Suprema Corte americana havia decidido na direção oposta apenas sete anos antes. No caso McConnell v. FEC, também pelo placar de 5 a 4, os juízes haviam entendido que, no confronto entre as ameaças à liberdade de expressão e os riscos de corrupção, deveria prevalecer o esforço de limitar a influência econômica sobre o Estado. Numa frase que ficou famosa, o juiz John Paul Stevens afirmou que “o dinheiro, como a água, sempre tentará encontrar uma saída”; logo, seriam válidas as iniciativas legais para diminuir a possibilidade de contaminação da política pelos interesses corporativos.

Essa reviravolta no entendimento mostra como o assunto é controverso. Numa perspectiva internacional, não há um modelo dominante. Existem países extremamente permissivos, que não impõem qualquer limite às doações empresariais (como os EUA desde 2010, Inglaterra, Austrália e Alemanha), outros que permitem contribuições de empresas, mas sujeitas a um teto de valor (Japão, Itália, Finlândia e boa parte da América Latina) e ainda nações que recentemente proibiram qualquer transferência de recursos de corporações para partidos ou candidatos, como França, Espanha, Portugal e Canadá.

Em 2015 o Brasil também promoveu uma mudança de paradigma no que se refere à regulação das doações eleitorais. Depois de duas décadas em que as empresas puderam contribuir para as campanhas (1994 a 2014), o Supremo Tribunal Federal acolheu um pedido do Conselho Federal da OAB e declarou inconstitucional o emprego de dinheiro de empresas nas campanhas eleitorais. No entendimento da maioria dos ministros, o Brasil havia se tornado uma plutocracia - onde o governo é exercido pelas elites econômicas, que elegem candidatos que, uma vez no poder, retribuem a generosidade de suas doações com toda sorte de benefícios legais, fiscais ou creditícios.

De fato, o cruzamento de dados sobre financiamento eleitoral e comportamento parlamentar apresenta fartas evidências dessas relações. Antes da decisão do STF, era possível identificar como políticos financiados por empresas atuavam em seu interesse, seja apresentando projetos de lei que poderiam beneficiá-las, votando a seu favor em medidas provisórias que continham vantagens como incentivos tributários, subsídios ou regulação mais frouxa.

Em 2015, a maioria do plenário do STF decidiu vetar a doação de empresas buscando coibir relacionamentos não republicanos entre grandes empresários e políticos, como ficava claro com o avanço das investigações da Operação Lava-Jato, que àquela altura começava a expor as vísceras do sistema político brasileiro. Os três votos vencidos - dos ministros Teori Zavascki, Gilmar Mendes e Celso de Mello - alertaram, porém, que a proibição poderia ser inócua, por uma série de motivos: os gastos eleitorais continuavam muito altos e as empresas poderiam contornar a restrição valendo-se de doações diretas feitas pelos seus sócios ou executivos (como pessoas físicas), de laranjas e até do velho caixa dois (pois até hoje a prática não é considerada crime).

Nesta semana ocorre, durante o 4º Encontro Brasileiro de Governo Aberto, em Brasília, o lançamento de uma iniciativa que vai tornar mais fácil o acompanhamento, pela sociedade, do que realmente se passa no Congresso. Batizada de Parlametria - uma colaboração das organizações Dado Capital e Open Knowledge Brasil com o laboratório de Analytics da Universidade Federal de Campina Grande (PB) -, a plataforma utiliza inteligência artificial e ciência de dados para traçar o perfil político de deputados e senadores e medir temperatura e pressão das proposições em tramitação no Congresso, disponibilizando-os livremente para cidadãos e entidades da sociedade civil.

Por meio do cruzamento de dados abertos de diversas fontes, o Parlametria identificou, por exemplo, que sócios de empresas brasileiras destinaram mais de R$ 115 milhões para o financiamento de campanhas dos deputados e senadores eleitos nessas eleições. Analisando sua distribuição por setor, constatamos que construção civil e setor financeiro continuam entre os maiores doadores - assim como acontecia quando as contribuições empresariais ainda eram liberadas.

Os dados também mostram a repetição de antigos padrões, como deputados financiados por empresários do setor de ensino dominando a Comissão de Educação e senadores que receberam muito dinheiro de sócios de empresas de construção tendo uma predileção especial pela Comissão de Infraestrutura, assim como um número expressivo de parlamentares sendo financiados por representantes de atividades dependentes da regulação ou de contratações estatais, como saúde e vigilância e locação de mão-de-obra terceirizada.

Como diria o juiz Stevens, falecido em julho deste ano, o dinheiro é como água, e não podemos ter a ingenuidade de acreditar que as empresas deixaram de se interessar por influenciar as decisões políticas somente porque o STF entendeu que isso seria inconstitucional. Felizmente os códigos e algoritmos, desenvolvidos por pesquisadores interessados em reduzir a assimetria de informação na política brasileira, continuam mapeando evidências de pressão indevida e favorecimentos ilícitos no dia-a-dia do Congresso.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

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