Nascidos como esteios das grandes democracias representativas de massa surgidas gradualmente na Europa a partir das últimas décadas do século XIX e com maior ímpeto após a Segunda Guerra Mundial, os partidos políticos ingressaram no século XXI em franco processo de crise. Ainda permanecem como personagens centrais do jogo político e parlamentar, mas perderam protagonismo como agentes de mobilização, educação política e formatação da cidadania. Por caminhos múltiplos, puseram em xeque suas próprias autoimagens culturais e o modo mesmo como são vistos e assimilados pela opinião pública. Deixaram, em suma, de atuar como fatores de hegemonia — de formação de consensos e da fixação de diretrizes ético-políticas –, processo que se transferiu sempre mais para o mercado (o marketing, a publicidade), a indústria cultural e os diferentes ambientes virtuais.
O mundo político foi assim literalmente invadido por políticos personalistas, regra geral demagógicos e populistas, bem como pela efervescência caótica das redes sociais e do ativismo associativo. A derrocada dos partidos, especialmente em sua formatação tradicional, com máquinas administrativas pesadas e ritos verticalizados, passou a reforçar a ideia de que a democracia representativa ingressou em crise de igual proporção, com a ampliação da fuga dos eleitores, o aumento do desinteresse político da população e a desvalorização das eleições como método para a escolha dos governantes.
Nos países ocidentais, a abstenção eleitoral chega a ultrapassar um quarto do eleitorado, ao mesmo tempo em que crescem os protestos de todo tipo e as críticas aos sistemas políticos, aos partidos e a seus líderes. As vozes dos cidadãos, porém, não chegam aos vértices do Estado, o que despoja a democracia de parte ponderável de sua capacidade de limitar o poder.
Eleitores se afastam das urnas, partidos perdem inscritos e militantes, decai a confiança nas instituições. A movimentação associativa parece ignorar a política institucionalizada e esta, por sua vez, tende a se oligarquizar, a aprofundar seus nexos com o sistema econômico-financeiro e a virar as costas para os cidadãos, que passam a se sentir “sem representação”. A sensação é de que há muita “política” e pouquíssima política ao mesmo tempo. Estaríamos frente ao esgotamento da “democracia representativa fundada sobre uma relação de osmose entre os cidadãos e seus representantes”? Tal crise somente poderia ser superada se a estrada dos cidadãos voltasse a se encontrar com os caminhos da política.
O populismo ressurge
Movimentos populistas apareceram recentemente em quase todas as democracias, impulsionando o que costuma ser visto como uma inflexão mundial da extrema direita, renacionalizante e conservadora. Mas é um fato que “políticos de todas as colorações apelam para os interesses do povo, e todo partido de oposição faz campanhas contra o establishment”, o que complica a distinção entre o populismo e a política democrática corriqueira. Para Nadia Urbinati, “o populismo deve ser considerado uma nova forma de governo representativo”, baseado em uma relação direta entre o líder e as pessoas que ele define como “boas” ou “corretas” e com as quais ele se relaciona sem a necessidade de intermediários — em particular, sem partidos políticos e meios de comunicação independentes. Ainda que tais governos populistas se distingam de regimes ditatoriais ou fascistas, sua dependência da vontade do líder, sua baixa tolerância, sua repulsa às oposições e às rotinas constitucionais da democracia fazem com que estejam sempre a um passo do autoritarismo.
Democracias iliberais
Marca registrada dessa situação é o surgimento, em diversas sociedades, de formas variadas do que tem sido chamado de “democracia iliberal”: sistemas em que se dá a eleição regular dos dirigentes políticos mas onde pouco respeito há pelos direitos humanos, pelo pluralismo e pela tolerância, com a formação de um circuito que tende a garantir a reposição dos detentores do poder. Os casos de Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdoğan (Turquia) e Vladimir Putin (Rússia) são considerados emblemáticos. Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil) seguem a tendência, na qual os instrumentos legais da democracia são empregados de modo autoritário e mediante uma coreografia demagógica que, prolongada no tempo e articulada mundialmente, sugere a cristalização do risco daquilo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamaram de “morte das democracias”.
O voto serviria para legitimar governos que corroem a democracia. “O retrocesso democrático hoje começa nas urnas”, escrevem Levitsky e Ziblatt. Ampliam-se os espaços para a emergência de outsiders que, aproveitando-se com maior ou menor inteligência dos espaços democráticos existentes e contando com a conivência de forças sistêmicas, do Legislativo ao Judiciário, promovem práticas que rebaixam a democracia e, como decorrência, minam a capacidade de oposição dos partidos políticos e movimentos. Não somente descaracterizam as regras democráticas e roubam legitimidade das oposições, como agem para limitar as liberdades civis e fazem vistas grossas ao emprego da violência, quando não a estimulam abertamente.
Há ritos, rotinas e instituições democráticas, mas não há um processo organizado de produção de democracia e de disseminação da consciência de cidadania. Clãs familiares, organizações fanatizadas, patriotismo artificial agressivo, violência verbal e ameaças à imprensa e ao jornalismo, tuítes bizarros e falas destemperadas liberam toxinas antidemocráticas que vão dissolvendo o que existe de sentimento de pertencimento a um povo comum, a um demo, um “nós” democrático.
Para complicar, os governos assim constituídos apresentam-se como se carregassem nas mãos todas as promessas de renovação política e regeneração moral. Fomentam confusão e mal-estar, contribuindo para desorganizar e paralisar os partidos que a eles poderiam se opor. A “desunião democrática” serve, assim, de alimento para a chegada ao poder dos novos autoritários e para sua reprodução.
No caso brasileiro, pôs-se em circulação uma retórica reacionária de fundo evangélico e concentrada nos costumes. Valores conservadores que defendem a família, a pátria, a autoridade paterna, a masculinidade e a religião são proclamados ao mesmo tempo em que se faz o elogio do ultraliberalismo na economia, formando um compósito paradoxal.
Em sociedades divididas e fragmentadas, carentes de pontes e mediações políticas, como são muitas das atuais, o reacionarismo consegue se reproduzir. As “democracias iliberais” alimentam-se da insegurança e das incertezas que cercam os cidadãos que, reunidos em grupos pequenos e autorreferidos, tornam-se presas fáceis de líderes que se apresentam como “fortes” e dispostos a tudo para ajudar os mais “fracos”.
Passa-se a falar em “pós-democracia”: “ainda que as eleições continuem a transcorrer e a condicionar os governos, o debate eleitoral é um espetáculo firmemente controlado, conduzido por grupos rivais de profissionais especializados nas técnicas de persuasão e concentrado em um número restrito de questões selecionadas por esses grupos. A massa dos cidadãos desempenha um papel passivo, aquiescente, até mesmo apático, limitando-se a reagir aos sinais que recebe. À parte o espetáculo da luta eleitoral, a política é decidida em privado pela interação entre os governos eleitos e as elites que representam quase exclusivamente interesses econômicos”.
Especialmente na esfera superior do sistema político, o clima é de mudança de paradigma e perda de qualidade da democracia: entre as muitas dimensões caóticas das modificações políticas contemporâneas, “o primeiro aspecto que se deve destacar é o processo de regressão oligárquica da democracia”, ou seja, o “deslocamento para cima dos mais relevantes centros de tomada de decisões, com o que as decisões políticas escapam das sedes mais amplas e se refugiam em lugares menos acessíveis, reservados a restritos grupos oligárquicos”, traduzindo-se assim em “um verdadeiro processo de des-democratização”.
Nesse ambiente, os governos e a classe política se soltam de suas comunidades e as deixam sem muitas saídas, ao mesmo tempo que pioram seu desempenho. Nos vazios que se abrem, projetam-se uma cidadania ativa, mas excessivamente posicionada contra o sistema político, mídias tradicionais e novas mídias, muitas tribos e nichos identitários, um mercado que funciona com moto próprio e indivíduos “empoderados”. Economia, política e sistema de comunicação estão conectados, mas há pouca articulação democrática: falta solidariedade (coesão e unidade) entre as classes e dentro de cada classe. Tudo isso encapsula e comprime a democracia política.
O social fica mais complexo
A guinada iliberal da democracia, embora se dê em um terreno imediatamente político e ideológico, tem determinações sociais profundas. Nas sociedades hipermodernas dos dias atuais, as experiências cotidianas sofrem o efeito cruzado da financeirização e da mundialização. A revolução tecnológica faz com que a vida se acelere, se diferencie, se fragmente e se individualize. A “estabilidade” é problematizada em termos individuais, nos relacionamentos, na vida profissional e nas organizações, sejam elas empresas, escolas, movimentos ou partidos políticos, que precisam empenhar sempre mais recursos (financeiros, humanos, técnicos, emocionais) para funcionarem de modo razoável. As sociedades passam a ser eminentemente comunicativas, com a informação adquirindo valor crescente como recurso essencial de atuação, especialmente precioso quando se tem em vista a intensificação de um firme “desejo social de participação”.
Reitera-se, desse modo, o processo registrado por Norbert Elias: o “equilíbrio entre a identidade-eu e a identidade-nós” é abalado, radicalizando uma dinâmica que vinha, a rigor, desde o final da Idade Média. “Mais e mais frequentes se tornaram os casos de pessoas cuja identidade-nós se enfraqueceu a ponto de elas se afigurarem a si mesmas como eus desprovidos do nós”, com a consequência de que a “identidade-nós das pessoas, embora decerto permanecendo presente, passou a ser obscurecida, em sua consciência, pela identidade-eu”. Trata-se de um processo que explica a gradual perda de coesão social provocada pela complexificação globalizada da vida e que, ao mesmo tempo, ajuda na compreensão da reação renacionalizante que se manifesta com regularidade ao longo da história, com particular destaque nos dias atuais, que poderiam ser percebidos como atravessados por uma espécie de “vingança” da “identidade-nós”.
Nessas sociedades, a mundialização da economia exerce um efeito desagregador sobre os diversos aspectos da vida organizada. Há mais do que transformação e mudança acelerada, a ponto de Ulrich Beck falar em “metamorfose”, uma transformação da natureza humana: estão todos — sociedades, grupos, classes, indivíduos, organizações — projetados no mundo, que se cosmopoliza e passa a exercer forte “atração gravitacional” sobre os Estados nacionais e suas instituições. Ocorreria então uma “metamorfose abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas e acontece de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”.
Em uma “sociedade de risco mundial”, na qual se empilham “incertezas fabricadas”, descontroles e descuidos, a maior parte dos problemas não encontra resposta institucional, criando a sensação de caos e insegurança. As instituições fracassam porque, concebidas que foram no interior de uma lógica nacional, não estão equipadas para a realidade cosmopolita. Ingressa-se em uma “zona crepuscular entre o falecimento da era nacional e a emergência de uma era cosmopolita”, zona essa em que o indivíduo se torna o ponto de referência, mas “afunda em uma inimaginável quantidade de dados”. A comunicação digital intensificada “força os indivíduos a confiar em si mesmos porque solapa a matriz de identidades coletivas dadas e a usar os recursos que os espaços cosmopolitas de ação possuem”. A experiência cotidiana fica cortada por uma espécie de “reflexividade organizada”, na qual tudo se torna reflexo e reflexão.
A vida fica saturada de tecnologia de comunicação e informação. Ganhos conseguidos com o progresso mostram-se sempre mais carregados de perigo. A paisagem mundial fica tingida por crises econômicas sucessivas e tragédias ambientais, tsunamis inesperados, incêndios arrasadores, em um quadro de irresponsabilidade de governos e instituições. A atual questão climática e do aquecimento global insere-se precisamente nesse contexto: tratada ora de forma apocalíptica, ora com desdém, ela expressa, ao mesmo tempo, a incompetência dos governos — muitos dos quais, por não saberem como enfrentar o problema, alegam que ele não existe –, e a ausência de um consenso internacional sobre como gerenciar a gravidade da situação ambiental.
A expansão e a consolidação da globalização se fazem acompanhar de uma generalizada multiplicação dos sujeitos sociais, mas não trazem consigo um particular reforço da institucionalidade, o que faz com que a vida social fique mais solta em relação ao Estado e ao aparato institucional. A crise de poder do Estado-nação implica uma crise de confiança dos cidadãos em relação a seus governos e sistemas políticos, corroendo parte das condições de legitimidade.
Constrangidos pelo capital financeiro, pelas agências internacionais, por redes e fluxos globais, os Estados obrigam-se a despender esforços ininterruptos para manter viva sua operacionalidade “para fora” e sua capacidade de resposta “para dentro”, ficando com mais dificuldade para atender às demandas de seus cidadãos. Como observou Yuval Harari, “estamos encalhados em políticas nacionais” ao passo que tudo o mais se globaliza: a dissonância produz um descolamento entre Estado e sociedade, gerando um vácuo difícil de ser preenchido.
É o que permite a Alain Touraine falar em “situação pós-social”: sistemas e atores não mais se integram, jazem separados do mesmo modo que a economia e a sociedade, e somente conseguem ser politicamente unificados em patamares universais (os direitos humanos, o ambientalismo, a regulação da economia globalizada, por exemplo). Os partidos políticos progressistas, formados e treinados em outra estrutura social, sofrem para se adaptar ao mundo “pós-social”. O ambiente geral é de rupturas, dissociação e ruídos.
Dinâmicas sociais desse tipo produzem múltiplos efeitos sobre as ações coletivas. As lutas passam a ser mais segmentadas e individualizadas, orientadas por identidades e direitos. Com a ampliação do “desejo de participação”, as agendas se fragmentam e se torna mais difícil unificá-las, especialmente porque cresce a intolerância com organizações “pesadas”, lentas, burocráticas e centralizadas, como são os partidos políticos. As lutas tendem a ser performáticas e “expressivas”, espetacularizadas, concentradas na busca por identidade, autonomia e reconhecimento.
Os embates sociais tornam-se claramente “disputas de significados”, de “narrativas” e de modelos culturais. Para os movimentos que surgem a partir dessa dinâmica, o que importa não é mais o poder do Estado ou do sistema político e de seus agentes, mas o poder do cidadão e de suas organizações, a dignidade do indivíduo e dos pequenos atores sociais. O “empoderamento” torna-se a meta. Não se trata de mudar a ordem capitalista ou reformá-la, como na esquerda tradicional, mas sim de garantir espaços sempre maiores de autonomia individual, solidariedade cívica, cooperação, tanto quanto possível gerando atritos que modulem a força e as restrições do sistema institucional e do sistema econômico.
Movimentos e partidos
Se, por um lado, demagogos e populistas são vistos como fatores negativos, que rebaixam a qualidade da democracia e fazem com que prevaleça uma atuação política desprovida de grandeza cívica, as redes e o ativismo associativo costumam ser tratados como fatores que expressariam os novos termos da vida social e carregariam consigo algumas promessas de revitalização democrática.
Ainda que nem sempre o ativismo cidadão seja uma ferramenta efetiva de democratização, é um fato que sua expansão ao longo das últimas décadas reflete uma busca por participação que não estaria a ser fornecida pela vida política institucionalizada e pelos partidos políticos, que atuariam sempre mais fechados em si mesmos. A contestação feita pelos novos movimentos em rede, nacionais e transnacionais, seria assim tanto uma “virtude cívica”, que fomenta a participação dos cidadãos, como um desafio para a democracia, graças aos efeitos disruptivos que tendem a ter sobre governos e sistemas políticos.
Como, porém, os partidos controlam os canais institucionais da política e são particularmente decisivos nos processos eleitorais, criou-se a percepção na opinião pública de que eles seriam os verdadeiros donos da representação, personagens do fenômeno da “partidocracia” e daquilo que, no Brasil, designou-se como “velha política”. Em uma época na qual a política não é devidamente valorizada no âmbito estatal e na opinião pública, os partidos são rejeitados por serem vistos como excessivamente poderosos no controle do processo decisório, o que afastaria os cidadãos das decisões políticas e bloquearia a participação cívica, com o efeito colateral de entregar a política aos interesses unilaterais dos políticos e à corrupção.
O incômodo causado pelos partidos, porém, nem sempre foi uma regra, ainda que tenha se manifestado de forma recorrente em diversas sociedades. Os partidos políticos de massa, em particular, conheceram períodos de prestígio, identificação e interação ético-política com os cidadãos, durante os quais atuaram de maneira efetiva tanto na governança das sociedades como na formatação de políticas públicas e na ampliação de direitos e garantias. Os “trinta anos dourados” do Estado de bem-estar, na Europa, por exemplo, foram vividos com um claro protagonismo partidário, sobretudo da social-democracia, do trabalhismo, da democracia cristã e do comunismo democrático. Muitos processos de transição democrática, como no Brasil de 1982 até a primeira década do século XX, foram vividos com a presença de partidos políticos com capacidade de liderança e articulação, casos do MDB, do PT e do PSDB, que obtiveram expressivo reconhecimento social.
Como observou Norberto Bobbio, dentre outros, “a polêmica antipartidos é tão antiga quanto os próprios partidos”. Como são associações de pessoas que “fazem acordo para estimular certas decisões políticas mais do que outras e determinar a política nacional”, é inevitável que os partidos sejam vistos como grupos privados de poder, mesmo que revestidos de funções públicas. Além do mais, a tipologia dos partidos é elástica e acomoda desde associações personalistas, instrumentalizadas pelos chefes, nas quais nada se discute ou se formula, até organizações especializadas no controle de recursos de poder e que operam como verdadeiros clusters dentro do Estado, com as devidas variações (partidos-Estado, partidos ideológicos, partidos-rede, partidos de massa). Tal fato faz com que se amplie com facilidade a imagem negativa dos partidos, ao mesmo tempo que dificulta sobremaneira o estabelecimento de fronteiras ou distinções entre o que é um partido e o que é um movimento cívico ou um movimento de ideias.
Acrescente-se a isso que os partidos foram fortemente afetados pelas “consequências da modernidade” tardia, que aprofundaram a reflexividade social, ou seja, geraram um universo de ação estruturado mediante práticas sociais que são constantemente “examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre as próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. O “conhecimento reflexivamente aplicado” e a revisão daquilo que está dado são radicalizados e reverberam em todos os aspectos da vida, fazendo com que cada pessoa seja impelida a refletir sobre suas próprias condições existenciais, ao mesmo tempo em que a dinâmica estrutural repercute sobre si mesma, gerando um permanente movimento de transformação.
Ao se combinar com a reorganização global da produção econômica capitalista, a modernização reflexiva sacrificou o mundo do trabalho, fragmentou as sociedades e pôs em curso uma revolução tecnológica-digital que imprimiu inédita velocidade à comunicação, reconfigurando os relacionamentos sociais, a cultura, as formas de organização. Movimentos de todo tipo surgiram na sociedade civil, impulsionados por lutas identitárias ou pela contestação ao sistema, desafiando as organizações partidárias. Tais circunstâncias modificaram o peso relativo dos partidos vis-à-vis as sociedades civis, os Estados e os mercados.
Os partidos passam a aprofundar sua crise, seja porque têm dificuldades para ajustar seus procedimentos aos novos ritmos da vida, seja porque suas bases de referência (classes sociais, grupos, regiões) se fragmentaram e adquiriram outras formas de agregação, seja enfim porque a própria democracia passou a sofrer abalos em sua tradução institucional. No afã de compensar a crise, os partidos ingressam em metamorfose permanente, perdendo as características que lhes davam sustentação e coerência.
Está nesse ponto o dilema que tem levado seja ao desaparecimento de grandes partidos da tradição comunista, como o italiano, seja aos problemas da social-democracia e do trabalhismo nos países em que conheceram sua maior fortuna (França, Alemanha, Inglaterra). A rigor, as organizações partidárias vivem hoje a processar conflitos internos e a estabelecer relacionamentos com movimentos que as acossam e com elas competem. O quadro é de busca de reposicionamento, de recuperação de um protagonismo que se perdeu no tempo.
Configura-se assim um quadro no qual a proliferação de movimentos empurra a política para uma dinâmica sempre mais centrífuga, sem que os partidos consigam compensar isso com a afirmação de uma dinâmica oposta, de tipo centrípeta. Em decorrência, prolongam-se processos que ampliam a fragmentação, não beneficiam a democracia e minam a “consciência da coletividade”.
A crise dos partidos de massa (especialmente dos perfilados mais à esquerda) coincide, por um lado, com o esgotamento das duas tradições que moldaram o mundo moderno, o liberalismo e o socialismo, e, por outro, com a disseminação social da democracia e dos direitos humanos. O desdobramento disso é que a luta política fica desprovida de agentes capazes de levar a democracia para o plano institucional, que é onde se pode de fato garantir direitos e ampliar a cidadania. Crescem assim os dilemas do campo progressista, ou seja, das correntes políticas e intelectuais sustentadas pela interpenetração vigorosa da liberdade com a igualdade social. Como viver numa “era de perplexidade”, pergunta-se Yuval Harari, na qual o gênero humano enfrenta revoluções sem precedentes, ao mesmo tempo em que “todas as narrativas antigas estão ruindo e nenhuma narrativa nova surgiu até agora para substituí-las”?
Se a velha ordem industrial e pós-industrial se mostra esgotada, também é verdade que ainda não se estabeleceu um novo padrão de vida coletiva, que se ressente da ausência de agentes unificadores e de um projeto de sociedade que reunifique o que está separado e prefigure o futuro, fornecendo uma imagem de como a vida comum pode ser na época de complexidade social e de preponderância da tecnologia e da inteligência artificial.
A proliferação de movimentos cívicos está diretamente determinada por esse quadro de metamorfose do mundo. Ela expressa a modificação dos humores sociais, o aumento da fragmentação e da complexidade societal, em um contexto no qual a política deixa de fornecer respostas satisfatórias, convincentes. Desejosos de participação e refreados pelas idiossincrasias dos sistemas políticos, muitos cidadãos buscam novos espaços de agregação e atuação. Os movimentos tornam-se, assim, uma espécie de desaguadouro do ativismo que floresce na hipermodernidade, expressando uma vontade coletiva de limitar as oligarquias partidárias, reformar a política e inventar novas formas de atuar politicamente. No horizonte de todos esses movimentos, anuncia-se a perspectiva de não repetir a organização tradicional dos partidos políticos.
Invariavelmente, os novos movimentos trouxeram, na agenda, a contestação da política institucional e das práticas nela ancoradas, algo que se expandiu na mesma medida em que avançaram a crise do Estado de bem-estar e a ultrapassagem da sociedade industrial. Como demonstram os fatos das duas primeiras décadas do século XXI, um clima de mal-estar, indignação e revolta se colou à vida cotidiana. “Não foram apenas a pobreza, a crise econômica ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada. Mas sim a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural”. Redes multitemáticas se formam tendo na base um interesse comum: “controlar a capacidade de definir as regras e normas da sociedade mediante um sistema político que responde basicamente a seus interesses e valores”.
Dadas as circunstâncias de crise da política, os movimentos sociais podem de fato ajudar a tirar o poder e o sistema político da zona de conforto em que vivem. Podem pressioná-los de fora para dentro, forçá-los a se atualizar e a se democratizar. Podem introduzir, no sistema, novas regras, novos critérios de inclusão, novos direitos e novos processos de tomada de decisões. Podem fazer com que a “política-vida” se cole na “política-poder”. Fica, porém, em aberto, o problema de saber em que medida os movimentos podem atingir esses fins sem uma articulação com o sistema político, ou seja, com partidos, instituições sistêmicas e governos.
Os movimentos sociais da hipermodernidade não podem ser tratados como expressão típica da esquerda ou do progressismo democrático. Refletem muito mais a complexidade social, as falhas do sistema político e as próprias características adquiridas pela democracia representativa no correr das modificações estruturais. No Brasil atual, por exemplo, os movimentos sociais surgidos nos últimos anos têm um perfil mais propriamente “conservador”, privilegiando o questionamento de instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, a pressão em favor do combate à corrupção — visto como um pleito de caráter mais moral que político –, a reivindicação de melhores políticas públicas.
Se considerarmos particularmente o Brasil, não será difícil constatar a presença de traços que definem essa paisagem de metamorfose e transfiguração. A própria redemocratização, iniciada nos distantes anos 1980, parece sem força para se desdobrar. Faltam-lhe, entre outras coisas, atores e projeto. Os partidos brasileiros não conseguem dar conta de uma realidade que escapa à sua compreensão e que os empurra para a condição de meros reprodutores do sistema. Dividem-se e subdividem-se ao sabor da dinâmica política, o que os enfraquece e amplia a fragmentação do sistema partidário. Deixam escapar pelas mãos algumas oportunidades importantes para melhorar seu funcionamento, amenizar os estragos sobre a democracia e encontrar pontos de cooperação e unidade que transfiram substância a seus programas de ação e às grandes linhas doutrinárias que os referenciam: o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo.
Movimentos e crise da política no Brasil
A situação partidária no Brasil é marcada por um paradoxo: ainda que pouco eficientes no diálogo com a sociedade e a opinião pública, os principais partidos funcionam e conseguem transferir alguma estabilidade ao sistema político. Vivem em um ambiente de disputas incessantes por espaços e recursos de poder, algo amplificado pela forte fragmentação do Congresso e pelo funcionamento de “bancadas suprapartidárias” que em boa medida retiram força e coesão dos próprios partidos. São também acossados, ao menos desde 2013, pelos movimentos que se dedicam à seleção e formação de lideranças cívicas, que terminam por opor aos partidos uma dinâmica externa a eles, fonte de não poucos problemas.
Apesar disso, as principais agremiações — PT, PSDB, PMDB, PL, DEM, PSD, PSB, PDT (não necessariamente nesta ordem) — conseguem manter uma surpreendente unidade de atuação parlamentar, graças aos influxos da política subnacional (o peso dos governadores e das bancadas estaduais) e a uma relação de barganha com o Poder Executivo. Suas estratégias “corporativistas” de defesa dos próprios interesses fazem com que o sistema partidário se reproduza, mas sempre em tensão com a opinião pública.
Um sistema partidário estável não é sinônimo de eficiência na gestão pública, na governança, no controle do Poder Executivo ou na revitalização da democracia. Pode mesmo ser o contrário disso. Os partidos brasileiros funcionam, mas carecem de capacidade de apresentar projetos de sociedade. Entregam-se sem pudor ao jogo eleitoral e à manipulação dos recursos de poder de que podem dispor. Não selecionam adequadamente seus representantes, preocupam-se pouco com sua formação e seu preparo técnico-político e cultural.
Um sistema desse tipo funciona com brechas evidentes, por onde entram as críticas da opinião pública, as táticas de captura dos partidos pelos grandes interesses organizados e a busca incessante, pela sociedade civil, de caminhos alternativos de pressão e representação.
No Brasil, o alarme soou em 2013, quando massas de manifestantes desceram às praças sem organização e sem lideranças, posicionando-se como fatores de pressão sobre o sistema político e de recusa à intermediação partidária. Ficou evidente a distância entre o sistema político e a polissêmica voz das ruas.
Os protestos surpreenderam, mas as razões de sua efervescência estavam inscritas na realidade do capitalismo globalizado, na história nacional e na conjuntura política em sentido mais estrito. Falou alto a reestruturação da vida brasileira, que se fazia sem ultrapassar a desigualdade e a má oferta de serviços públicos, as injustiças, a má qualidade da política democrática, a corrupção e os desmandos governamentais.
Dos protestos de 2013 vieram movimentos que se mantiveram ativos nas ruas e desaguaram no impeachment de Dilma Rousseff e, depois, na eleição de Jair Bolsonaro. Se, antes, a contestação social era feita por iniciativas de esquerda, gradualmente houve um deslocamento: da exigência de mais igualdade, distribuição e reforma social, passou-se a uma pauta de questionamento dos políticos, da corrupção, dos poderes instituídos, algo que terminou por ser assimilado pela direita e pelo campo mais conservador. O verde-e-amarelo tomou conta das ruas, a expressar um “patriotismo” extemporâneo e uma repulsa ao “petismo” que dominara a política nacional até a queda da ex-presidente.
Em 2013, o protesto contra as deficiências na prestação de serviços públicos trincou a imagem de “paz social” que havia no ar. A revolta não organizou uma agenda clara, mas fez com que ressoasse por longos dias um grito de indignação e angústia coletiva. Ignorou parlamentares, sindicatos e partidos políticos. Ainda que de modo espontâneo e improvisado, deixou evidente que se dirigia contra o governo representativo tal qual estruturado no Brasil: contra todos os governos, o sistema político, seus atores, seus procedimentos e sua cultura. O protesto escancarou uma crise da política que vinha de longe, que trocara sua manifestação explícita por uma latência recorrente que aos poucos foi corroendo a representação política e pondo em xeque a legitimidade dos governos. O que se questionou, portanto, foi o arranjo político protagonizado por pessoas, grupos e classes, interesses econômicos e organizações que, por vias ora dissimuladas, ora explícitas, têm-se associado para governar o país.
A crise germinou e se aprofundou com o correr do tempo. Foi impulsionada pelos governos, que continuaram a exibir falhas graves e mau desempenho, tanto em termos de gestão e de políticas públicas, como em termos de comunicação e diálogo com a população. A corrupção cresceu ininterruptamente. Os partidos políticos seguiram em frente como associações parasitárias, sem vida e sem ideias. Não contribuíram para transferir maior politicidade à sociedade civil, que cresceu em dimensão e ativismo sem conseguir contornar a fragmentação. O sistema foi permitindo que se agigantasse o contraste entre a miséria de boa parte da população e os gastos desnecessários, o desperdício e o uso suntuoso de recursos públicos pela elite política e administrativa (Executivo, Legislativo e Judiciário). Foi se distanciando da sociedade e a incentivando a se tornar “contra a política”.
Para complicar, a perversão sistêmica ganhou uma sobredeterminação. Tornou-se mais grave durante o período em que o vértice do Estado passou a ser integrado por quadros e políticos do Partido dos Trabalhadores, que sempre se apresentou e cresceu como expressão do progressismo e da justiça social. Sob seus governos, porém, reproduziram-se as bases do clientelismo, do patrimonialismo e da corrupção, o que gerou ainda mais frustração e indignação, que aumentaram na medida em que foi ficando claro que persistiam os privilégios das grandes empresas, a impunidade dos mais ricos, os gastos exorbitantes e sem critérios claros, o enriquecimento dos dirigentes políticos.
Em junho de 2013, a hipermodernidade proclamou sua presença na política. Dali em diante, as ruas brasileiras ficaram mais ativas, mas o estupor se fixou no campo democrático. Uma incessante disputa por visibilidade e “narrativas” tomou conta da vida política e foi corroendo, pouco a pouco, todos os protagonistas do sistema político e da política tradicional, abrindo espaços generosos para outsiders e novas agendas, de tipo conservador. A derrota dos partidos de centro, centro-esquerda e esquerda nas eleições de 2018 revelou uma democracia carente de eixo, exposta ao autoritarismo regressista e demagógico de Jair Bolsonaro, que se alimentou da desilusão social, do antipetismo e da denúncia da “velha política” para vencer de modo insofismável nas urnas.
A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018, explica-se em boa medida por esse quadro. Naquele ano, com o sistema político abrindo falência, a economia em recessão e a sociedade mostrando apetite anti-establishment, as correntes democráticas (liberais, social-democratas, de esquerda) privilegiaram as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita. Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Prepararam o terreno para a eleição de um candidato improvável e despreparado, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.
Bolsonaro mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo de valores religiosos e moralistas e sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.
A extrema-direita vitoriosa chegou ao poder disposta a promover a eliminação da esquerda e de suas filosofias, transformando a democracia progressista em inimigo, desprezando postulações identitárias, criminalizando gays e feministas em nome de uma moralidade regressista. Estigmatizou a política, os políticos e seus partidos, menosprezou o ritmo democrático e o sistema de freios e contrapesos da República, sempre apelando à sociedade para atacar o “sistema”. Passou a atuar em nome do combate a aspectos deplorados pela opinião pública — a “velha política”, os políticos, a corrupção — , articulando tais pontos com uma bizarra postura contrária ao “globalismo”, à democracia representativa, ao ambientalismo, ao socialismo.
A hostilidade como procedimento tornou-se metódica, um recurso de mobilização. O governo permanece em campanha sem alcançar muita coordenação e sem entregar resultados concretos. O risco de isolamento social despontou, fazendo com que o governo aumentasse seu estilo belicoso.
A guerra ideológica da extrema direita contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil desorganiza a democracia, aumenta os custos da transação política, enfraquece instituições e órgãos públicos. Em vez de promover a superação da polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ela a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita. Por um lado, impede que se atinja uma sociedade mais coesa e um Estado administrativo mais eficiente. Por outro, faz com que se reforce a crise de confiança nas instituições e na própria democracia, fomentando a concentração das expectativas sociais na autoridade presidencial.
Conclusão: o futuro em aberto
O principal problema do progressismo brasileiro não é a existência de um governo de extrema direita presidido por um demagogo fundamentalista e retrógrado. O problema é que ele governa em um quadro de desarticulação, de desconexão dos partidos democráticos entre si e com a sociedade civil. A verborragia provocativa, a narrativa tóxica e o estilo agressivo do presidente precisam ser decodificados. Não são o dado mais importante: são parte do drama, integram a coreografia, mas não definem o drama.
Por trás da violência verbal, há uma disputa direcionada para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicamente se concebeu o desenvolvimento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclasses. Ainda não está suficientemente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe, também, se do projeto governamental sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do crescimento e melhoria das condições de vida dos brasileiros. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrumento de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalmente, com isolacionismo internacional e alinhamento meio atabalhoado com as correntes “soberanistas” que tentam se fixar no mundo. O ultraliberalismo econômico serve de instrumento para a afirmação do reacionarismo na política, na cultura, na moral.
O comportamento presidencial e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade.
O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e a ascensão inesperada de seu partido, o PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expedientes de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamentares, como por exemplo nas votações da reforma previdenciária.
O sistema resiste e demonstra, em alguns momentos, ser capaz de impulsionar o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independência, em parte se consome em seu próprio fogo corporativista.
Falta articulação ao governo, que carece da capacidade de produzir consensos e arregimentar as próprias forças no Congresso, como tem sido evidenciado pela marcha da reforma previdenciária, tida como estratégica pelo governo e necessária pela maior parte dos parlamentares. A reforma avançou mais por empenho da Câmara dos Deputados do que por iniciativa governamental. Foi sendo reformulada no âmbito legislativo sem que as bases do governo atuassem de forma coordenada.
A falta de articulação política é um problema dos partidos, mas é antes de tudo expressão de uma grave falta de liderança. Sem líderes consistentes e com um presidente da República desinteressado do tema, despreparado para imprimir qualidade ao processo decisório, a política transcorre com dificuldade. Seria uma oportunidade para os democratas, não estivessem eles afetados pela mesma carência de lideranças e agregação.
A repercussão desse vazio atinge o conjunto das relações políticas: entre o Executivo e o Legislativo, entre os três poderes, entre a Câmara e o Senado, entre os entes da federação. Os dispositivos de “checks and balances” (pesos e contrapesos) tornam-se pouco eficientes e a dinâmica política, por sua vez, deixa de produzir efeitos virtuosos, travando o avanço de reformas econômicas, o controle das políticas públicas e a proteção de direitos.
Há muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não há propriamente oposição. A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaristas, petistas, conservadores, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política. A polarização se mantém em parte como produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que vem dominando a política nacional, e em parte graças à insistência governamental em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. Assim disposta, a polarização reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialistas, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.
Crise de pensamento e ação dos democratas
Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabilidade e expansão do consumo. Poderá evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Somando-se a isso o desmascaramento da sua postura anticorrupção, seu familismo recorrente, o comportamento folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcionamento da máquina administrativa, é de prever que sua popularidade não subirá.
Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorientadas, contaminando os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrático. Não há lideranças, faltam propostas e ideias, a perspectiva de uma coalizão democrática permanece no papel.
Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Em política, influenciam, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodificadas, decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsionam. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituição, especialmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceituosas, misóginas, anticientíficas, abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiros. Deseducam para a cidadania.
Diante das tropas fanatizadas do bolsonarismo, palavras servem para mobilizar, sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteira sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem. É preciso separar o caricato do substantivo, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica sobretudo por isso. Desconstruí-la é recuperar uma perspectiva e um entendimento que se perderam pelo caminho.
O progressismo brasileiro precisa abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Ir além da “resistência” e da contestação retórica. Deve converter-se em oposição e disputar a sociedade, sem medo de ousar, correndo riscos que valham a pena.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular aposentado da Universidade Estadual Paulista, tradutor e articulista do jornal “O Estado de S. Paulo”. Autor de “As possibilidades da política: ideias para a reforma democrática do Estado” (Paz e Terra, 1998), “Em defesa da política” (Editora Senac, 2001), “Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e políticos da gestão democrática” (Cortez, 2004), “Potência, limites e seduções do poder” (Editora Unesp, 2008), “O encontro de Joaquim Nabuco com a política. As desventuras do liberalismo” (Paz e Terra, 2010), “As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo” (FAP/Contraponto, 2013).
**Este artigo foi retirado da edição de novembro de 2019 do Journal of Democracy em Português — publicação do Plataforma Democrática, uma iniciativa da Fundação FHC e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.
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