- Valor Econômico
Instabilidade é uma onda que pode sim chegar ao Brasil
Pau que dá em Chico, dá em Francisco. A América Latina arde e o presidente Jair Bolsonaro não está delirando quando imagina que pode lidar aqui com o mesmo tipo de solavanco que lida Sebastián Piñera. Pode mesmo, embora não haja nada divisível no curtíssimo prazo.
O espectro que ronda a América Latina não é de direita e nem de esquerda. No superciclo eleitoral dos últimos dois anos em países da região, o Brasil, o próprio Chile, Panamá, El Salvador, Argentina, Guatemala, Colômbia e México foram para governos de oposição. A onda não tem viés ideológico, é contra quem simboliza o sistema. Bolsonaro, Lopez Obrador, Alberto Fernández, sinalizam apenas que ninguém pode se sentir seguro.
Advogado e cientista político argentino radicado no Chile, Daniel Zovatto é um estudioso de processo eleitoral comparado e leu atentamente a última rodada de pesquisas do Laboratório Latino-Americano de Administração Pública (Lapop), coordenado pela Universidade Vanderbilt. O levantamento, com pesquisas em 20 países, foi divulgado no mês passado.
Ele aponta que a onda antissistema é uma tendência que vem de longe, tanto que o apoio à democracia nos países pesquisados caiu de 67,6% para 57,7% entre 2004 e 2019, segundo a pesquisa. O cansaço com a democracia, em alta depois que diversos casos de corrupção corroeram o sistema de crenças das sociedades nas instituições, foi potencializado pela inovação tecnológica. A satisfação com a democracia cai sete pontos percentuais entre os usuários intensos das redes sociais. “As redes envolveram na política de forma intensa setores que a acompanhavam a distância, aumentando a crispação social, polarização, emocionalidade e intolerância a tudo que fira o espírito de tribo. Isto torna o esvaziamento de crises um processo difícil”, opina Zovatto.
A desconexão entre a elite política e seus representados tornou-se mais evidente. Os partidos se esvaziaram. O caldo de cultura de décadas de compromissos pendentes e promessas descumpridas vai se derramando. “Esta é a década da decepção”, sentencia.
Em alguns países o sistema já se encontra implodido, como é o caso, sobretudo, do Brasil. Bolsonaro foi a resposta que se encontrou à completa destruição do sistema partidário e do enfraquecimento da elite empresarial tradicional. Em outros, prepara-se a alternância, mas dentro do sistema, como a que se avizinha no Uruguai, onde deve ganhar a oposição tradicional. E quem ganhou recentemente, como Piñera (2017), Lopez Obrador (2018) e Bolsonaro (2018) já encontra dificuldades políticas.
Na Bolívia, Venezuela e Nicarágua os governantes de turno se reelegeram, em processos eleitorais que com muito boa vontade poderiam ser considerado duvidosos. Mais exato está em se afirmar que nestes três casos princípios basilares da democracia foram rompidos. A exceção é o Paraguai, em que nada parece abalar o domínio do Partido Colorado. É um tremendo contraste com a década anterior, em que Álvaro Uribe, Hugo Chávez, Luiz Inácio Lula da Silva, o casal Kirchner, Rafael Correa e Evo Morales construíram ciclos longos de poder na Colômbia, Venezuela, Brasil, Argentina, Equador e Bolívia.
“O fato é que há uma mudança de guarda e os ciclos de poder estão mais curtos. Quem conquista o poder, rapidamente tem a base corroída, perde apoios. São ciclos mais curtos, com desgaste acelerado e isto nenhuma relação tem com a ideologia. Simplesmente o ganhador não consegue formar maioria para promover as mudanças que a sociedade demanda”, comentou Zovatto. A esse comentário é preciso acrescentar que, às vezes, o governante que empalma o poder em uma onda de insatisfação social sequer tem a plena consciência das demandas que representa.
Se de fato o Brasil é parte de um contexto latino-americano nestes termos, a estratégia de Bolsonaro de governar com e para minorias fanatizadas pode não lhe garantir um novo mandato eleitoral em 2022.
De nada adiantaria, partindo dessas premissas, transformar a Secretaria de Cultura e o Ministério da Educação em usinas de memes e lacrações nas redes.
E nem prometer porrada a quem der porrada, a julgar pelo exemplo chileno. De nada adiantou a Piñera ir à televisão cercado de generais, bradando que estava em uma guerra. E que ninguém diga que o endurecimento ficou só na retórica. Houve manifestantes que ficaram cegos pela explosão de bombas de gás, houve outros que foram amarrados em torres com os braços abertos, como crucificados. Foram 9 mil detidos. A instabilidade no Chile só aumentou.
Nas duas últimas semanas o presidente chileno recorreu à moderação. Acenou com concessões no modelo econômico para contornar uma pauta política que passa pela sua renúncia e por uma nova Constituição. Em um primeiro momento a fala macia deu ao dirigente chileno o oxigênio de governabilidade que ameaçava rarear quando radicalizou. As manifestações, entretanto, continuaram.
Ontem, o presidente do Chile ensaiou uma nova guinada: convocou uma reunião do Conselho de Segurança Nacional, com a presença das três armas, para endurecer a legislação contra saques e manifestações violentas. Com um ramo de oliveira em uma mão e um porrete na outra, Piñera segue na encruzilhada.
Sinal dos tempos
Nada mais representativo do clima no Brasil do que a cena de cafajestagem de arrabalde que tomou conta dos estúdios da Jovem Pan, ontem. Ao vivo, o jornalista Glenn Greenwald ofendeu com um “covarde” o também jornalista Augusto Nunes, que duvidara na internet da dedicação do interlocutor e do marido a seus filhos. Nunes partiu logo para o bofetão, e na sequência os dois foram separados.
Nas redes sociais, correntes de solidariedade a um e a outro imediatamente se armaram. Não se questionou em um caso a agressão verbal e no outro a desproporcional e absurda resposta física. Nunes ganhou até uma proposta de moção de aplauso na Assembleia Legislativa de São Paulo. Deveria estar no DNA de qualquer jornalista não descer o braço no entrevistado, por mais acalorada que esteja a discussão. Era assim que funcionava. Não mais. Em um certo sentido, como anteviu Nelson Rodrigues, o Brasil está maduro para a carnificina.
*César Felício é editor de Política
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