Binyamin Appelbaum, do conselho editorial do ‘New York Times’, questiona ascensão dos economistas na formulação de políticas públicas
“O Chile é uma história que mostra as cautelas que devemos ter com as políticas de livre mercado”, afirma Binyamin Appelbaum
Por Roberto Rockmann — Para o Valor Econômico
Em 1950, ser economista nos Estados Unidos não tinha nada de extraordinário. Agências reguladoras eram dirigidas por advogados, os tribunais alegavam que provas econômicas eram irrelevantes. No Federal Reserve, Fed, o banco central americano, a liderança da instituição reunia banqueiros, advogados e um produtor de porcos em Iowa, mas nenhum economista.
A situação começou a mudar a partir do fim dos anos 60, quando os economistas desempenharam um papel de liderança na formulação de políticas públicas, no foco à inflação e na crença de que o mercado era o melhor regulador. O economista Milton Friedman (1912-2006) e a Universidade de Chicago foram líderes desse processo que deixou os Estados Unidos e se estendeu a outros países.
A ascensão foi marcada pelo maior acesso a números, pela disputa ideológica com a União Soviética, por duas crises do petróleo, pela alta da inflação consequente e pelas políticas de privatização e concessão conduzidas com destaque pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013).
A revolução, no entanto, foi longe demais. O crescimento desacelerou e a desigualdade aumentou. A expectativa de vida aumentou para os 20% mais ricos dos americanos entre 1980 e 2010. Nas mesmas três décadas, a expectativa de vida diminuiu para os 20% mais pobres. Uma tradição americana, o antitruste está morto, sob a crença de que a fusão de empresas tem um foco: a redução de preços.
Esses são alguns dos pontos levantados por Binyamin Appelbaum, integrante do conselho editorial do “The New York Times”, em seu recente e controverso livro “Economist Hour: False Prophets, Free Markets, and the Fracture of Society” (Hora dos Economistas: Falsos Profetas, Mercados Livres e Fratura da Sociedade). Sem tradução ainda para o português, o livro tem estimulado debates calorosos nos EUA por causa da tese de que o mundo liderado pelos economistas elevou a desigualdade.
As experiências de Friedman e de seus discípulos da Universidade de Chicago chegaram até o Chile. Segundo Appelbaum, o país sul-americano é um exemplo de como o livre mercado pode trazer prejuízos à sociedade. O sistema de previdência do Chile com o regime de capitalização tira dos pobres e dá aos ricos.
Valor: No seu livro, o senhor diz que a grande transformação ocorrida no mundo com os economistas ganhando projeção na condução de políticas públicas foi o aumento da desigualdade econômica e descrédito na democracia. Como isso ocorreu?
Binyamim Appelbaum: Meu livro é sobre o relato dessa revolução. Na década de 1960, economistas nos Estados Unidos começaram a ter um papel central no desenho de políticas públicas. Eles defenderam que o governo reduzisse sua presença na economia. Ou seja, menos regulação, menos impostos, menos gastos. O argumento era simples: o mercado é muito mais eficiente e melhor em alocar recursos do que os burocratas. O primeiro ponto a se destacar dessa revolução é que ela fracassou em acelerar o crescimento econômico. Ela ainda contribuiu para aumento na desigualdade econômica. Em 1971, 10% das famílias mais ricas detinham 31% da renda total dos Estados Unidos. Em 2016, essas famílias detinham 48%. Na metade do século passado, governos tinham adotado políticas para aumentar as oportunidades entre as pessoas com base em educação de baixo custo e para reduzir desigualdade com taxação progressiva de impostos. Durante o momento em que eu chamo de “hora dos economistas”, os Estados Unidos e os países que seguiram seus passos descartaram essas políticas. A desigualdade ganhou espaço porque deixamos de tentar reduzi-la. Ajustado pela inflação, o salário mínimo nos Estados Unidos atingiu seu pico em 1968 e nas quatro décadas seguintes perdeu 40% de valor. Outro ponto que eu argumento no meu livro é que esse contexto tem tido impacto sobre a democracia. À medida que a diferença entre ricos e pobres aumenta, se torna muito mais difícil de construir o apoio político para criar políticas amplas de benefícios sociais. Vemos riscos buscando ampliar seus lucros com o governo e os pobres implorando por algum apoio.
Valor: Os economistas Milton Friedman e John Maynard Keynes são protagonistas centrais do seu livro. Essa disputa ideológica entre os dois continuará no século XXI?
Appelbaum: Na década de 1930, Keynes praticamente inventou a ideia de que os governos podem ter um papel ativo em estabelecer as condições econômicas, limitando perdas nos ciclos de baixa e elevando a prosperidade. Já Friedman foi o mais famoso antagonista dessa ideia, argumentando que os governos devem se manter o mais distante possível da cena. Ele dizia que os bancos centrais deviam ser substituídos por computadores para que o aumento da base monetária fosse feito de forma estável. A política econômica hoje ainda é moldada por essas ideias que são diversas entre si: o ativismo de Keynes contra a fé de Friedman nos mercados. Mas, em um senso mais amplo, ambos venceram a disputa porque eles tiveram êxito em fazer a economia a língua mais importante do arsenal de políticas públicas de liberais ou conservadores.
Valor: O senhor afirma em seu livro que a “hora dos economistas” acabou e a crise financeira de 2008 é uma prova. O que virá nessa nova ordem?
Appelbaum: A crise financeira global encerrou um período em que a crença nos mercados era uma espécie de fé religiosa. A questão é o que virá a seguir. Assim como nos anos 30 ou na década de 70, estamos vivendo em um momento em que perdemos confiança nas regras antigas, mas ainda não concordamos sob quais novas regras iremos viver. Essa é uma dúvida que exige resposta urgente porque a alternativa é cair em um nacionalismo populista conduzido por líderes cujo poder emana da perda de fé nos tecnocratas. A infraestrutura do capitalismo corporativo não irá desaparecer. O que a gente precisa é restringir e fortalecer essa infraestrutura para que ela sirva melhor ao interesse público. Será preciso reconstruir a fé nos mercados e no capitalismo mostrando que ambos podem servir ao bem comum.
Valor: O tema da desigualdade perdeu espaço para a inflação quando esses economistas ganharam projeção, segundo seu livro. Isso já é passado?
Appelbaum: Uma das mensagens centrais dos economistas com relevância no cenário mundial na segunda metade do século XX foi que a desigualdade não era um tema importante. Eles mostravam disposição para apoiar iniciativas que reduzissem a pobreza, mas argumentavam que, se as pessoas estavam se beneficiando mesmo que minimamente do crescimento econômico, isso já era bom, ou seja, não importava se poucas pessoas se beneficiavam muito mais. O bolo podia ser repartido por poucos, desde que houvesse migalhas. Muitos economistas dos Estados Unidos acreditavam que a expansão do PIB era a melhor forma de reduzir a pobreza e que criar maneiras de reduzir a desigualdade poderia reduzir o crescimento. Menos desigualdade, menos prosperidade. Nós aprendemos uma lição dolorosa. Um dos grandes problemas na economia americana é como o setor de serviços cresceu nas últimas décadas: até 2026, cinco dos dez empregos que deverão ser criados estão ligados à enfermagem ou a cuidar de idosos ou de crianças. São empregos que não pagam bem e demandam muito. O Fundo Monetário Internacional (FMI) já apontou que ela reduz o crescimento da economia.
Valor: O senhor afirma que o propósito de eliminar a inflação se tornou um fenômeno religioso no período entre a década de 60 e o início dos anos 2000. Isso perdeu ímpeto? O que se tornou a nova religião?
Appelbaum: A mais importante influência de Milton Friedman nas políticas públicas foi seu sucesso em convencer os governos de que os bancos centrais deveriam controlar as condições macroeconômicas e que eles deveriam focar exclusivamente em manter a inflação baixa e sob controle. O Banco Central dos Estados Unidos foi criado para evitar crises financeiras, mas ele abandonou sua missão na década de 90 sob a liderança do Alan Greenspan, que insistia que os “players” do mercado deveriam regular a si mesmos e que essa autorregulação era muito melhor. O mandato do BC americano é dado pelo Congresso e tem como objetivos reduzir o desemprego e manter a inflação baixa, mas deu-se prioridade para o controle dos preços. Esse foco passou a definir o papel dos bancos centrais pelo mundo. Os economistas que comandaram os bancos centrais insistiram que a inflação baixa é essencial para a estabilidade econômica. A crise de 2008 tornou claro que eles estavam errados: a inflação estava baixa antes da crise e o sistema financeiro entrou em colapso, a inflação estava sob controle e o desemprego explodiu.
Valor: O que ocorreu então?
Appelbaum: O Fed lançou uma campanha maciça de estímulo monetário para reduzir o desemprego e passou a ter um papel mais ativo como regulador financeiro. Outros bancos centrais seguiram os passos. A Nova Zelândia, que foi o primeiro país a instruir seu Banco Central a focar exclusivamente na inflação, acabou de revisar suas atribuições, ampliando o escopo da instituição, que agora terá de focar na taxa de desemprego também. Há uma discussão de que essas instituições podem fazer muito mais do que se ater à inflação. Mas isso não é crença universal: o Banco Central Europeu ainda mantém sua obsessão centrada na inflação sob controle. Há um outro ponto: quem faz as políticas públicas continua ainda muito focalizado na política monetária. Eles ainda não reconheceram que Friedman estava errado. A União Europeia e os Estados Unidos poderiam se beneficiar de uma dose saudável de gastos de seus governos.
Valor: Combater o poder de grandes monopólios privados foi uma tradição importante criada nos EUA. Um exemplo foi a divisão da Standard Oil no início do século passado. Apple, Facebook, Google, Amazon apontam em nova direção?
Appelbaum: O antitruste é uma ideia americana. O crescimento de grandes empresas provocou grandes discussões no fim do século XIX e início do século XX. O Congresso aprovou leis para impedir isso. A maior dessas companhias, a Standard Oil, foi dividida em 30 diferentes empresas. Em outros países, grandes corporações eram aceitas, mas nos Estados Unidos os formuladores de políticas sempre buscaram preservar negócios menores e limitar a influência das grandes empresas em políticas públicas. Durante a “hora dos economistas”, no entanto, os economistas convenceram os governantes de que a lei antitruste deveria ser refinada e revisada. Ela deveria concentrar sua atenção nos preços aos consumidores. Se uma fusão resultasse em preços mais baixos, ótimo, ela deveria ser aprovada.
Valor: Qual foi o resultado?
Appelbaum: Uma rápida consolidação no mercado corporativo, com as empresas grandes passando a dominar a economia. Acho que o antitruste está basicamente morto. As leis ainda estão nos livros, o que permite que elas possam voltar a ser aplicadas. Outro ponto é como regular empresas tecnológicas como o Google e o Facebook. Elas não cobram taxas diretamente dos consumidores pelos serviços oferecidos. Elas vendem patrocínios. As leis hoje não preveem sanções sobre esse panorama tecnológico. Mas, em uma interpretação mais ampla da legislação antitruste, o governo poderia argumentar que essas empresas impedem a ascensão de rivais potenciais ou estão exercendo poder dominante.
Valor: Em meio à discussão da reforma previdenciária, alguns especialistas no Brasil citaram o caso do Chile e do regime de capitalização como bem-sucedidos. O senhor, no livro, argumenta em direção oposta. O sistema chileno trouxe problemas para o país?
Appelbaum: O sistema de previdência do Chile é uma perversão da ideia de seguridade social: ele transfere riqueza dos pobres para os ricos. Ele torna a desigualdade ainda mais grave. O Chile tinha um sistema que era subfinanciado. O Chile prometia mais do que podia pagar. Nos anos 80, o general Augusto Pinochet [1915-2006] aceitou os conselhos de um economista chamado José Piñera, intelectual que tinha um ideário próximo ao de Milton Friedman. A ideia era que o sistema fosse privatizado. O sistema então requer que os chilenos que trabalham invistam 10% de seus salários em empresas de seguro privadas. Isso ajudou a sofisticar o mercado financeiro e a incentivar a expansão do mercado corporativo de dívida. Com dinheiro, as empresas chilenas passaram a comprar rivais pela América do Sul. Mas esse sistema não oferece aposentadorias adequadas. O benefício mensal médio, baseado nas contribuições individuais dos trabalhadores, é um pouco mais de US$ 300, menos que o salário mínimo. A razão básica é a desigualdade: a maioria dos chilenos não tem dinheiro para pagar aquilo de que precisam quando ficam velhos. Um parêntese: Pinochet, antecipando que o sistema não iria dar muito certo, insistiu para que as pensões dos militares continuassem a ter um mínimo assegurado pelo governo. Há um outro ponto: o governo chileno está patrocinando um cartel, um grupo pequeno de empresas de investimento que cobram taxas exorbitantes dos planos. É difícil imaginar uma lição melhor do que a política de livre mercado pode fazer.
Valor: O senhor compara Chile e Taiwan e diz que o país asiático teve uma receita diferente de crescimento baseada no governo e na industrialização. Como o senhor vê o exemplo de crescimento do Chile?
Appelbaum: O Chile é uma história que mostra as cautelas que devemos ter com as políticas de livre mercado. A prosperidade do Chile está baseada na exportação de recursos naturais: cobre, salmão e frutas. Como parte do empurrão para se abrir ao exterior, o Chile abandonou sua indústria. Nas palavras de Alvaro Bardón [1940-2009], que foi presidente do Banco Central do país no fim dos anos 70: “Se as vantagens comparativas apontam que o Chile não deve produzir nada senão melões, produziremos apenas melões”. O problema é que o Chile não conseguiu construir mais riqueza sobre seu sucesso. A Maersk abriu em 2015 uma unidade de US$ 200 milhões no porto de San Antonio. A ideia era construir contêineres refrigerados para exportar frutas do Chile para o exterior. Menos de três anos depois, a empresa anunciou o fechamento da unidade e a transferência da produção para a China. A Maersk argumentou que era difícil encontrar fornecedores locais das peças necessárias para a produção de contêineres.
Valor: Qual foi a receita de Taiwan?
Appelbaum: Taiwan seguiu uma receita bem diferente de políticas econômicas. Conduziu uma redistribuição de terras na década de 50, criando ampla base de famílias com dinheiro para começar negócios ou mandar seus filhos para a universidade. Manteve controle sobre o comércio externo protegendo a indústria local, primeiro no setor têxtil. Depois, nos anos 70, investiu maciçamente na indústria de semicondutores se tornando líder na área. Curiosamente, Brasil e Taiwan enviaram no mesmo período cientistas para os Estados Unidos para treinamento, mas apenas o país asiático se tornou bem-sucedido. As políticas implementadas pelo Chile e Taiwan foram diferentes e resultaram em benefícios diferentes também. Em 1950, a produção econômica per capita do país asiática era 1/4 da registrada no Chile. Em 1980, ambos empatavam. Em 2010, a renda per capita de Taiwan era o dobro daquela do Chile. Tem um nível de desigualdade muito mais baixo.
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