Os partidos e a política – Editorial | O Estado de S. Paulo
“A sensação é de que há muita ‘política’ e pouquíssima política ao mesmo tempo”, escreve Marco Aurélio Nogueira no artigo Partidos, movimentos, democracia: riscos e desafios do século XXI, recentemente publicado na edição brasileira do Journal of Democracy.
O professor da Unesp faz referência a um quadro contraditório. Os partidos são ainda estruturas importantes – “permanecem como personagens centrais do jogo político e parlamentar” –, mas “perderam protagonismo como agentes de mobilização, educação política e formatação da cidadania. (...) Deixaram de atuar como fatores de hegemonia – de formação de consensos e da fixação de diretrizes ético-políticas –, processo que se transferiu sempre mais para o mercado (o marketing, a publicidade), a indústria cultural e os diferentes ambientes virtuais”.
A situação de crise vai muito além das fronteiras das legendas. “A derrocada dos partidos (...) passou a reforçar a ideia de que a democracia representativa ingressou em crise de igual proporção, com a ampliação da fuga dos eleitores, o aumento do desinteresse político da população e a desvalorização das eleições como método para a escolha dos governantes”, aponta Nogueira.
A relação entre partidos e democracia vem de longa data. Nas democracias representativas de massa surgidas na Europa a partir do final do século 19, as agremiações partidárias eram vistas como elementos fundamentais para o funcionamento democrático. Tal perspectiva está presente, por exemplo, na Constituição de 1988, que lista a filiação partidária entre as condições de elegibilidade. Com essa medida, mais do que impor um trâmite burocrático, a Carta Magna coloca os partidos políticos entre as instituições fundamentais para a organização do Estado, reconhecendo a esfera partidária como etapa obrigatória para o debate, o aprimoramento e a difusão das ideias e propostas políticas. “Ainda que pouco eficientes no diálogo com a sociedade e a opinião pública, os principais partidos funcionam e conseguem transferir alguma estabilidade ao sistema político”, reconhece o professor da Unesp.
No entanto, e aqui está um dos desafios atuais, tal realidade institucional não é percebida pela população. “Em uma época na qual a política não é devidamente valorizada no âmbito estatal e na opinião pública, os partidos são rejeitados por serem vistos como excessivamente poderosos no controle do processo decisório, o que afastaria os cidadãos das decisões políticas e bloquearia a participação cívica, com o efeito colateral de entregar a política aos interesses unilaterais dos políticos e à corrupção”, diz o artigo.
Diante desse distanciamento entre partidos políticos e sociedade, os movimentos ganham força. “Desejosos de participação e refreados pelas idiossincrasias dos sistemas políticos, muitos cidadãos buscam novos espaços de agregação e atuação. Os movimentos tornam-se, assim, uma espécie de desaguadouro do ativismo que floresce na hipermodernidade, expressando uma vontade coletiva de limitar as oligarquias partidárias, reformar a política e inventar novas formas de atuar politicamente. No horizonte de todos esses movimentos, anuncia-se a perspectiva de não repetir a organização tradicional dos partidos políticos.”
Por isso, o ativismo dos movimentos se dá em paralelo, ou mesmo em oposição, ao mundo da política institucional. É como se a força renovadora dessas novas agremiações, incluída a capacidade de dar voz aos cidadãos, dependesse de um distanciamento da política institucional. No entanto, ao se posicionar assim, tal ativismo limita sua própria capacidade de realização desses desejos de mudança. Referindo-se à situação do Brasil em 2019, Nogueira reconhece haver “muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não há propriamente oposição”.
O poder de transformação ainda passa pela política. Ou seja, o tão almejado empoderamento do cidadão passa necessariamente pela política, que é também política partidária. Quando se rejeita esse caminho, a participação política torna-se uma utopia, frustrando expectativas e reforçando ainda mais o círculo vicioso do alijamento do cidadão do poder político.
A via legislativa – Editorial | Folha de S. Paulo
Congresso tem legitimidade para definir prisão após condenação em 2ª instância
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal iniciou o atual período de oscilações no seu entendimento sobre a prisão de condenados em ações criminais. Decidiu que a pena apenas poderia ser executada diante do esgotamento de toda possibilidade de recurso, e não mais após decisão de segunda instância.
Em 2011, para ajustar o Código de Processo Penal ao novo ditame da corte, o Congresso mudou o artigo 283 e estabeleceu que a prisão —excetuadas a em flagrante, a preventiva e a temporária— só ocorreria “em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”.
A cronologia relativiza o argumento do presidente do STF, Dias Toffoli, de que apenas homenageou a vontade do legislador em seu voto que selou a terceira reviravolta na jurisprudência em 11 anos. Na verdade, foi um ato da vontade do julgador que iniciou esse vaivém.
Apesar disso, Toffoli se mostrou aberto a endossar alterações legais que reinstituam o cumprimento da pena após o segundo grau. Disse que a Carta de 1988 não estipula cláusula pétrea no assunto, deixando implícito que o artigo 5º, este intangível, rege a presunção de inocência, não o encarceramento para a execução penal.
Diante da percepção de que a maioria do STF concorda com Toffoli nesse ponto, deflagrou-se uma corrida legislativa para reformar os códigos. Ao Congresso Nacional, onde toda a população está representada, deveria mesmo caber o papel preponderante nesse tema.
Na Câmara, avança texto semelhante ao que propôs no início da década o então presidente do STF Cezar Peluso. Trata de mudar a Carta para transformar os recursos ao Superior Tribunal de Justiça (3ª instância) e ao Supremo (4ª) nas chamadas ações revisionais.
O meio parece uma tecnicalidade, mas uma ação revisional é aquela que tem o condão de modificar um processo que já acabou —transitou em julgado. A reforma, portanto, produziria o efeito de considerar transitadas em julgado todas as ações finalizadas na segunda instância.
No Senado, ganha força a ideia de modificar novamente o artigo 283 do Código de Processo Penal para deixar explícita a possibilidade de a pena começar a ser cumprida após o segundo estágio da jurisdição.
O caminho legislativo seria mais fácil neste caso, pois a proposta precisaria de maioria simples para ser aprovada. Na via da Câmara, uma reforma constitucional, seriam necessárias maiorias de 60%.
A despeito de considerações de ordem tática, o mais recomendável é trilhar as duas rotas: alterar a Carta e também o código. Seria uma manifestação eloquente da vontade da população, por meio de seus representantes eleitos, mais difícil de ser derrotada pelos humores circunstanciais da suprema corte.
A chance da Câmara na política ambiental e de defesa civil – Editorial | O Globo
Casa investigará motivos do fracasso do Estado na prevenção a desastres
A Câmara decidiu investigar as razões do fracasso do Estado brasileiro na prevenção de desastres ambientais e a ineficácia da Defesa Civil em emergências como o derramamento de petróleo no litoral do Nordeste e do Sudeste.
Vai instalar uma Comissão de Inquérito subscrita por 267 deputados, ou seja, a maioria (52%) do plenário de 513 parlamentares. O instrumento escolhido, uma CPI, é questionável, porque tem sido banalizado. São vários os casos de comissões de inquérito improdutivas, terminadas em fiasco, com aprovação de relatórios pífios e corrupção de alguns dos seus integrantes.
A dimensão do desastre do petróleo vazado no litoral, ampliada pela ineficiência do setor público em mitigar danos, impõe aos líderes da Câmara o desafio de resgatar a função originária das CPIs, e apresentar respostas e propostas construtivas sobre dois problemas nacionais que precisam ser focalizados de maneira interdependente — as políticas de meio ambiente e de defesa civil.
Elas não existem além do papel, como ficou demonstrado na sequência de desastres em Mariana e Brumadinho (Minas Gerais); nos incêndios e no aumento do desmatamento na Amazônia; e no óleo espraiado por quase 700 localidades em quatro mil quilômetros de litoral, do Maranhão ao Espírito Santo. Se a Câmara conseguir superar a fútil polarização poderá se concentrar em apurar o que os governos federal, estaduais e municipais fizeram nessa crise. Terá um roteiro para elaborar políticas públicas efetivas de proteção ambiental e de defesa civil.
Como mostra a tragédia do vazamento de óleo, o problema vai muito além do aspecto preservacionista. Envolve revisão e construção de mecanismos de fiscalização, com integração de atores ainda à margem do planejamento setorial, como a Marinha e as empresas petrolíferas, com interesse óbvio na prevenção de incidentes na plataforma marítima. Tem razão o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quando diz ser vital “focar no que o governo fez, certo ou errado, e onde pode melhorar sua estrutura”.
A Câmara tem a chance de revisar orçamentos, elaborar e consolidar normas que induzam à inovação na prevenção, fiscalização, controle de danos, e até em iniciativas para conservação e uso sustentável do bioma marinho. Há questões pendentes, entre elas a imobilidade do aparato estatal. Há um plano nacional de contingência para vazamentos de petróleo que, simplesmente, não foi acionado — e não se conhecem as razões da insuficiência.
Serão necessários bom senso e foco para evitar a armadilha do confronto entre o governo e a oposição que administra parte dos estados atingidos. Se não houver equilíbrio, a Câmara não perderá apenas uma chance de afirmar seu poder na formulação de políticas públicas, mas, inevitavelmente, se entregará ao descrédito com mais uma CPI inócua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário