- O Globo
Sedição de 1968, com suas passeatas, confrontos, desobediência civil etc, retomou seu fôlego?
‘Parasite”, produção sul-coreana dirigida por Bong Joon-ho, sucesso no outono de Nova York, retrata duas famílias: uma, miserável de dar dó; a outra, riquíssima. Premiado com a Palma de Ouro em Cannes, neste 2019, a história registra o esgarçamento dos caminhos institucionais da democracia liberal.
Outro filme, “Coringa”, dirigido pelo americano Todd Phillips, mostra a construção social de um distópico cidadão. Bilheteria estrondosa ao redor do planeta, o enredo sem meias-palavras exacerba o mal-estar contemporâneo contra os regimentos da sociedade capitalista de cepa liberal.
As duas produções flagram a indisposição catártica contra o establisment, em dois mundos sem nuances, ora na sociedade sul-coreana, oriental portanto; ora na americana, em nosso Ocidente próximo. Mal-estar global. Há ainda a ótima série da “Years and years”, onde um grupo familiar da Londres contemporânea presencia a perda de status econômico-social por conta de políticas populistas.
Se a vida imita a arte, as revoltas populares no Chile, Equador, Peru, em Hong Kong, no Líbano, entre outras, todas ocorridas nos últimos meses, algumas ainda em curso, seria o caso de se perguntar: a sedição de 1968, com suas passeatas, confrontos, desobediência civil etc, retomou seu fôlego?
É, meu caro, McLuhan: de fato qualquer nova tecnologia traz benefícios — além de males escusos… O avanço digital levou qualquer cidadão a se tornar espécie de veículo de mídia, com alcance superior à sua rede de contatos.
E sabemos que a idade mental da massa é semelhante à maturidade de uma criança de 5 anos. Basta ler o Carluxo e as canalhices dos cães digitais — foi assim com a cepa petista e é agora com a filiação bozonista.
Em “O povo contra a democracia”, o cientista político Yascha Mounk também credita às redes sociais papel capital na difusão não só do ressentimento como na propagação de insídias contra os melhores avanços da sociedade, a começar pela ciência — não é, Salles?
Mounk não diz mas parte da atual reação se dá pelo rápido avanço na desmontagem da imagem de mundo herdada de nossos pais. No Brasil, o slogan do atual governo lança boia aos desafortunados pela modernidade ao radicalizar duas ficções: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Qual Brasil, qual Deus?
O livro de Mounk ressalta a manipulação da massa ressentida pelos populistas, com suas propostas simplistas para o mundo contemporâneo —a construção de um muro, a liberação do porte de armas, a volta do papai-e-mamãe etc.
Só que a massa não é fiel. Apesar de regurgitar, desconfiam os bozonistas? As últimas sedições mostram uma reação popular sem tintura —identificadas por uma exaustão aos modelos populistas da extrema direita e da esquerda arcaica (adeus, Evo).
Se a vida imita a arte ou a arte imita a vida, não importa, mas a história ensina: a Revolução Francesa comeu os seus líderes.
*Miguel De Almeida é escritor e diretor de cinema
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