segunda-feira, 2 de março de 2020

Marcus André Melo* - A coabitação indesejada

- Folha de S. Paulo

Executivo com apoio parlamentar minoritário tem um leque de escolhas

A República começou mal na França. Jules Grévy, seu primeiro presidente, teve que pedir demissão devido a um escândalo familiar: seu genro montara um lucrativo negócio de venda de títulos da Légion d’Honneur. Os primeiros-ministros não tiveram sorte diferente: foram 50 na 3ª República (1870-1940), o que dá uma média de 15 meses de mandato.

De Gaulle ofereceu, em 1958, remédio para a malaise política instituindo o semi-presidencialismo e o chamado “parlamentarismo racionalizado”. A Presidência saiu muito fortalecida.

O presidente passou a ser escolhido em eleições diretas, e os governos passaram a deter instrumentos contra maiorias irresponsáveis: só seriam admitidas moções de censura construtivas (apresentando alternativa majoritária), e o Executivo poderia apresentar proposições do tipo pegar ou largar (“vote bloquée”). Funcionou.

A dinâmica do semi-presidencialismo depende do apoio parlamentar do presidente. Se minoritário, vira rainha da Inglaterra. Indicará o primeiro-ministro apoiado por maioria, e refugiar-se-á em matérias de sua competência exclusiva (ex política externa, segurança).

Se majoritário, o sistema muda o registro e funciona em chave presidencialista: o primeiro-ministro será apenas mais um membro do gabinete dominado pelo presidente.

O fortalecimento do Executivo entre nós, em 1988, também foi reação à instabilidade; e engendrou governabilidade, inclusive fiscal. Mas o que ocorre com presidentes minoritários, tornam-se rainha da Inglaterra? Não. O presidente detém muito mais poderes que o semi-presidente francês; há maior potencial conflitivo.

As exigências para a derrubar o veto presidencial são mínimas (maioria absoluta em sessão conjunta, em contraste com os EUA —quórum de 2/3 nas duas casas), o que equilibra mais o jogo. O sistema partidário é variável crucial. Dado nosso pluripartidarismo exacerbado, as maiorias serão necessariamente multipartidárias.

O presidente minoritário no Congresso tem assim um leque de escolhas: construir coalizão majoritária, resignar-se como um presidente americano em “governo dividido”, ou mobilizar na opinião pública apoio externo ao Congresso (“going public”, no jargão). Esta última estratégia é típica de outsiders e revela fraqueza; é arriscada pois tende a produzir fadiga na opinião pública, e só funciona para agendas muito populares, segundo Samuel Kernell, em “Going public: strategies of presidential leadership”.

O problema é quando o presidente tenta unilateralmente impor sua agenda, infringindo decisões judiciais ou legislativas; utiliza nesse movimento recursos públicos ou patrocina atos ilegais de apoiadores.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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