- O Estado de S. Paulo
País começa a se cansar de um clima que azeda relações pessoais e tira a alegria de (con)viver
A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).
Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.
Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.
Diante das opções que não lhe agradam, Brooks pergunta: ainda poderá surgir entre os democratas uma candidatura capaz de apresentar e encarnar um relato mítico alternativo ao “socialismo” de Sanders para se contrapor ao nacionalismo xenófobo de Trump, que ele vê como o mal maior? O colunista não arrisca uma resposta. Apenas registra que nas suas andanças pelos Estados Unidos tem notado, no nível local, que a maioria das pessoas parece disposta a cooperar para resolver problemas comuns, independentemente de raça ou preferência partidária. Ainda que a observação de Brooks esteja correta, resta o imenso desafio de dar expressão política nacional concreta ao que se verifica difusamente no nível comunitário. Doze anos atrás, Obama conseguiu.
O Brasil está em outro ponto do ciclo eleitoral, mas a questão posta por Brooks se aplica muito bem à realidade brasileira. Por ora, apenas duas forças conseguiram produzir narrativas política e eleitoralmente poderosas sobre o que é e o que deve ser o Brasil. O relato mítico da nação devotada a Deus e por isso livre do mal da corrupção e da degeneração dos costumes leva vantagem sobre o relato mítico do País socialmente justo pela luta de um partido e de um líder do povo, com o povo e pelo povo. Isso porque o primeiro relato conta com os instrumentos do poder e com um presidente onipresente e o segundo está sem poder, sem dinheiro e com seu homem-mito eleitoralmente inabilitado, por problemas com a Justiça.
Para criar uma alternativa a essa dualidade, as forças de “centro”, por ora uma geleia de contornos imprecisos, não podem cair no erro da “idiotice da objetividade”, ou seja, acreditar ser possível combater poderosos relatos mítico-políticos apenas com apelos à razão, muito menos se calcados em argumentos tecnocráticos sobre propaladas ou reais virtudes administrativas. Claro que boas propostas e competência gerencial são importantes, mas de pouco valem na conquista de corações e mentes se não forem incorporadas como elementos de uma narrativa abrangente baseada em valores e sentimentos diferenciadores das opções ora dominantes.
Parte do desafio é desconstruir o relato mítico dos adversários. O bolsonarismo revela cruel falta de empatia com o sofrimento humano, intolerância com quem não se enquadra no padrão ultraconservador da moral e dos bons costumes, desprezo pelas mais elementares regras de convívio numa sociedade democrática. O petismo faz pouco do clamor por igualdade republicana perante a lei. Prefere vê-lo como produto da manipulação política, e não como resultado da democratização substantiva de uma sociedade que se cansou da impunidade dos poderosos. Rejeitando qualquer autocrítica, fecha-se sobre si mesmo e glorifica seu líder máximo.
Para construir uma perspectiva alternativa é preciso entender e sentir que o Brasil clama por decência, por igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, redução da violência, cuidado com as pessoas e com a natureza. Que começa a se cansar de um clima que azeda até mesmo as relações pessoais e tira a alegria de (con)viver. O País pede uma liderança que seja firme, mas não boçal, que respeite sinceramente a religiosidade do povo, nas suas diferentes fés, mas enfrente a manipulação política da religião como instrumento de poder e enriquecimento, que tenha crença verdadeira na democracia e nos valores da igualdade e da liberdade.
Além de um candidato, é necessário produzir uma narrativa política em torno desses valores e sentimentos. Não há muito tempo a perder.
* Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
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