Rozane Bezerra de Siqueira e José Ricardo Bezerra Nogueira* - Valor Econômico
Com a crise do novo coronavírus, o debate sobre esse recurso parece mais relevante do que nunca, já que fragilidade dos sistemas de proteção social tradicionais ficou exposta
Nos últimos anos o interesse em propostas de Renda Básica Universal (RBU) cresceu enormemente em todo o mundo. Segundo os autores de um livro sobre RBU publicado neste ano pelo Banco Mundial, “Exploring Universal Basic Income” 1, 91 livros sobre o tema foram publicados apenas na última década.
O interesse não tem se restringido ao meio acadêmico: programas-pilotos foram implementados em diferentes países, e na esfera política vários candidatos têm adotado propostas de RBU como pivô de suas campanhas.
Com a crise deflagrada pelo novo coronavírus, o debate sobre uma RBU parece mais relevante do que nunca, uma vez que a fragilidade dos sistemas de proteção social tradicionais ficou exposta. Em vários países, incluindo o Brasil, surgem medidas de pagamento de uma renda básica a indivíduos ou famílias na tentativa de tapar buracos no sistema vigente.
Todavia, essas transferências que estão agora sendo implementadas não configura RBU, pois estão programadas apenas para um período emergencial e os beneficiários devem satisfazer determinados critérios de elegibilidade. Em contraste, uma RBU é usualmente conceituada como montante fixo de dinheiro regularmente pago pelo governo a cada indivíduo na sociedade, independentemente de sua renda ou posição no mercado de trabalho.
A ideia básica tem mais de dois séculos, tendo sido introduzida pelo filósofo Thomas Paine (1737-1809). A onda recente (antes da chegada do coronavírus) de interesse em RBU surgiu inicialmente nos países desenvolvidos, motivada pela crescente insegurança no mercado de trabalho - associada à automação e à globalização - e pelo crescimento da desigualdade.
No Brasil, a ideia de prover renda básica a cada cidadão foi introduzida nos primeiros anos da década de 1990 pelo então senador pelo PT Eduardo Suplicy (atualmente vereador de São Paulo). A campanha de Suplicy levou à aprovação, em 2004, da Lei de Renda Básica de Cidadania (Lei nº 10.835, de janeiro de 2004), que estabelece a progressiva implementação de uma renda básica universal no país. A lei “não pegou”. Têm prevalecidos argumentos de que uma RBU não é fiscalmente sustentável, ou de que programas de transferências focalizadas e condicionais, como o Bolsa Família, são mais efetivos na redução da pobreza.
Com o objetivo de examinar os efeitos fiscais e distributivos da implementação de uma RBU no Brasil, os autores deste artigo realizaram simulações de esquemas alternativos de RBU, usando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2017 e técnicas de microssimulação de tributos e benefícios. Um dos esquemas simulados, conhecido na literatura como Basic Income/Flat Rate Proposal, combina uma RBU com imposto proporcional sobre todas as outras rendas.
A renda básica (paga a cada indivíduo) foi fixada em R$ 406 por mês, que em 2017 era equivalente à linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial para países de renda média alta (US$ 5,50 por dia). No esquema simulado, as aposentadorias e pensões pagas atualmente pelo governo são reduzidas no mesmo montante da renda básica e as demais transferências monetárias são abolidas. O imposto proporcional substitui o atual imposto de renda da pessoa física bem como as contribuições previdenciárias dos empregados. Sua alíquota é calculada de forma a garantir “‘neutralidade orçamentária”, significando que o déficit fiscal não é exacerbado.
Neste esquema, o custo líquido da RBU foi estimado em 11,5% do PIB (R$ 758 bilhões, em 2017), e a alíquota do novo imposto de renda (compatível com neutralidade orçamentária) foi estimada em 35,7%. Conforme projetado, a pobreza seria eliminada com a reforma. Cabe mencionar que, sob o sistema vigente, a proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza, em 2017, era 23,5%. Entre as crianças (17 anos ou menos), a taxa de pobreza era bem mais elevada, 39,7%, enquanto entre os idosos (65 anos ou mais), a proporção de pobres era 3,2%.
Em grande medida, isso ocorre porque hoje mais de 85% do gasto público com transferências monetárias correspondem a aposentadorias e pensões. O que também está associado ao fato do montante total de transferência para os 20% mais ricos da população ser cerca de dez vezes maior do que para os 20% mais pobres 2.
A proposta simulada também provocaria uma redução substancial na desigualdade de renda. Medida pelo coeficiente de Gini (que varia entre 0 e 1), a redução seria de mais de um quarto, com o Gini indo de 0,51 para 0,38.
Quase todos os indivíduos entre os 50% mais pobres da população teriam a renda familiar aumentada, sendo que os ganhos mais significativos se concentrariam na base da distribuição de renda. No caso dos 10% mais pobres da população, a renda familiar per capita quase que triplicaria, em média. Ao todo, 64% da população teria um ganho líquido com a reforma. As perdas líquidas, por sua vez, se concentrariam no topo da distribuição de renda. Para os 10% mais ricos, a redução média na renda domiciliar per capita seria de 16%.
Pode ser desconcertante admitir que a substituição (parcial) de um sistema complexo por outro - radicalmente simples - que paga uma quantia modesta a todos os indivíduos na sociedade e é financiado por um imposto com alíquota única sobre todas as rendas possa ter efeitos equalizadores tão fortes. De fato, essa oportunidade é peculiar do Brasil, dada a ineficiência e inequidade do sistema atual. Outros países enfrentam tradeoffs muito mais fortes entre sustentabilidade/viabilidade fiscal e equidade. É importante ressaltar que além de ganhos em termos de equidade, um sistema como o discutido aqui tem vantagens derivadas de sua simplicidade, universalidade e transparência.
Entre elas, está a redução da burocracia e de custos administrativos, bem como minimização de oportunidades para manipulação do sistema por grupos de interesses específicos.
Crises frequentemente são motores de mudanças estruturais de longo prazo. Ao sair desta que agora vivenciamos, o Brasil e o mundo terão acumulado mais experiência com programas extensivos de transferência de renda. Há ainda a esperança de mudanças nas atitudes, que se tornem mais favoráveis à construção de contratos sociais mais inclusivos. Uma RBU pode ter um papel crucial nesse mundo mais justo. As evidências para o Brasil indicam que temos essa escolha. A porta está aberta.
1 Gentilini, Ugo, Margaret Grosh, Jamele Rigolini, and Ruslan Yemtsov, eds. (2020). “Exploring Universal Basic Income: A Guide to Navigating Concepts, Evidence, and Practices”. Washington, DC: The World Bank
2 Ver “Efeito Redistributivo da Política Fiscal no Brasil”, Ministério da Fazenda, Brasília, 2017
*Os autores são do Departamento de Economia/UFPE
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