Claudio Sales e Eduardo Monteiro* – Valor Econômico
Eventual disparada de inadimplência das contas de luz pela impossibilidade de corte afetará distribuidoras
A crise sem precedentes que vivemos por consequência da covid-19 afeta a todas as pessoas em todos os países. Enquanto nos solidarizamos com as autoridades que precisam agir rapidamente sob muita pressão e agradecemos aos profissionais da saúde que arriscam suas vidas para cuidar da população infectada, também nos preocupamos em oferecer contribuições concretas para a continuidade da operação dos setores essenciais para o enfrentamento da crise.
As centenas de milhares de profissionais que têm trabalhado incessantemente para gerar, transmitir, distribuir e comercializar eletricidade sabem que o “produto final” por trás da complexa cadeia de valor do setor é a base para que todos os demais setores funcionem. É por isso que o setor elétrico é considerado essencial.
Todos os setores econômicos sofrem impactos profundos e precisarão dar suas contribuições para a saída da crise. Obviamente não será diferente para o setor elétrico. No entanto, por ser um setor regulado, toda e qualquer medida precisa ser pensada de forma coordenada e integrada porque a legislação e a regulação do setor, quando concebidas, não tinham diante de si um cenário como esse para testar a sua funcionalidade.
Os arranjos contratuais entre geradoras, transmissoras, distribuidoras, comercializadoras e consumidores são extremamente sincronizados e interdependentes. Logo, movimentos unilaterais que alteram leis e regras do setor podem induzir ao caos jurídico e a uma escalada de judicialização, prejudicando a coesão necessária para enfrentarmos nosso único real inimigo: o coronavírus.
Quando a Aneel, agência reguladora do setor, decidiu, em 24 de março, que as distribuidoras não poderão cortar energia nos próximos três meses de consumidores residenciais inadimplentes, assim o fez com motivação compreensível. O próprio relator da matéria observou que “não se trata de isentar os consumidores do pagamento pelo uso da energia, mas somente de garantir a continuidade do fornecimento àqueles que, neste momento de calamidade pública, não tiverem condições de se manter adimplentes”.
Entretanto, os consumidores residenciais respondem por quase metade do faturamento do setor (47,5%) e o aumento da inadimplência decorrente dessa medida, somado à queda do consumo pela drástica diminuição da atividade econômica, imporá sérias dificuldades para que as distribuidoras mantenham seus serviços de acordo com nossas necessidades e expectativas. Este é um exemplo de medida que tratou de um aspecto da crise, mas que produzirá impactos indesejáveis que deverão ser rapidamente endereçados pela própria Aneel.
É importante lembrar que a conta de luz coleta os recursos que sustentam toda a cadeia de valor do setor. De cada R$ 100 pagos, cerca de R$ 18 são destinados às distribuidoras, R$ 26 para os geradores (usinas hidrelétricas, termelétricas, eólicas e solares) e R$ 6 aos transmissores. Os 50% restantes são destinados ao pagamento de impostos, encargos e subsídios.
A crise da covid-19 imporá outros desafios enormes às operações elétricas. Em que pese as empresas do setor já estarem adotando medidas excepcionais para garantir que seus profissionais permaneçam seguros enquanto conduzem suas atividades, as exigências de distanciamento social têm motivado a emissão de decretos estaduais e municipais em várias regiões do Brasil que impedem a continuidade e conclusão de obras de expansão e manutenção de ativos das usinas geradoras e das redes de transmissão e distribuição.
Além de evitar a criação de novas medidas legais e regulatórias que, embora bem-intencionadas, poderão criar problemas de segunda ordem que se somarão aos problemas originais, é crucial contar com o apoio e pragmatismo das autoridades governamentais para ações concretas que produzirão efeitos positivos e rápidos e evitarão que o setor elétrico se fragilize em momento que exige robustez máxima dos serviços essenciais.
No rol de ações concretas, por exemplo, podemos pensar na definição de protocolos de operação que, sem comprometer a segurança dos trabalhadores, permitam a continuidade ou retomada das atividades nos setores industrial, de construção e de energia elétrica. A rápida disponibilização de testes para monitoramento diário da saúde dos trabalhadores destes setores também seria um ótimo instrumento.
Uma segunda ação importante é a oferta de financiamento oficial - com apoio de bancos como o BNDES em condições adequadas e prazos de amortização compatíveis com o desequilíbrio financeiro a que estão expostas as distribuidoras - para amenizar o impacto da eventual disparada de inadimplência das contas de luz pela impossibilidade de corte de fornecimento. Na mesma linha, o diferimento de impostos federais e estaduais sobre eletricidade poderia aliviar a crise de liquidez que afetará o caixa das distribuidoras de eletricidade no curto prazo.
Uma terceira ação urgente que poderia partir de iniciativa coordenada em nível federal é o cancelamento de decretos estaduais e municipais que têm parado as obras de projetos importantes para a manutenção da oferta confiável de eletricidade.
Além das medidas acima, uma reflexão muito oportuna seria colocar um holofote sobre os 50% de impostos e subsídios embutidos na conta de luz em prol da desoneração dos consumidores, buscando não apenas reduzir impostos federais e estaduais, mas também iniciar a redução de subsídios injustificáveis em tempos normais, e inaceitáveis em tempos de crise.
A crise global e multisetorial que atravessamos exige, mais do que nunca, a emergência de líderes com a capacidade de unir, planejar e agir.
Unir é fundamental para evitar dispersão de foco e para desenhar medidas equilibradas e universais que garantam que ninguém ou nenhum setor essencial seja deixado para trás. Planejar com serenidade é indispensável para trazer racionalidade em momento tão suscetível a emoções até compreensíveis, porém improdutivas. Partir para a ação, mas de forma unida e planejada, é a melhor estratégia para acelerar a saída da crise e pavimentar a retomada da normalidade em nossas vidas.
*Claudio J. D. Sales e Eduardo Müller Monteiro são presidente e diretor executivo do Instituto Acende Brasil
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