terça-feira, 30 de junho de 2020

Míriam Leitão - A razão de voltar ao velho debate

- O Globo

A resistência tem diversos caminhos, e o país vem dizendo que entendeu o risco e as ameaças do governo atual à democracia

Os shows de Gilberto Gil e Milton Nascimento no fim de semana emprestaram uma trilha sonora sutil e linda ao clima de resistência ao autoritarismo. A pesquisa da “Folha de S.Paulo” trouxe o alento de que aumentou para 75% o apoio à democracia entre brasileiros. Novas manifestações da coalizão de políticos e de atores da sociedade civil surgiram. O Brasil parece ter recuado várias quadras no seu processo histórico, tendo que retomar o esforço de convencimento das virtudes da democracia e lembrar o que foi a ditadura. É necessário?

O vice-presidente Hamilton Mourão, em artigo publicado no “Estadão” há um mês, disse que lendo “colunas de opinião e os despachos de egrégias autoridades” fica a impressão de que “sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil”. Aqueles anos não foram dourados — chumbo é o elemento químico que melhor descreve o período — e a demografia derruba a tese.

Na faixa etária de 65 anos ou mais estão menos de 10% da população. Metade brasileiros tem até 33 anos, é mais jovem que a democracia. Quem tem hoje 43 anos nasceu em 1977, o ano da última luta dentro do Exército, quando a linha dura, encarnada pelo general Sílvio Frota, foi derrotada pelo ditador Ernesto Geisel. Daí para o final do governo militar foram ainda sete anos. O Brasil se livrou penosamente do arbítrio, construiu sua democracia com esforço e deveria estar no trabalho árduo de aperfeiçoá-la. Quem vê de forma idílica aquele período terrível está dentro do governo, e não fora dele. O debate voltou porque ficou inevitável diante da agenda do atual presidente da República.

A democracia tem maioria de defensores, segundo Datafolha, mas há números que assustam. Some-se a parcela dos que concordam que é preciso fechar o Supremo Tribunal Federal com os que discordam em parte ou concordam em parte e teremos 39% aceitando, total ou parcialmente, o fechamento do STF. Os que defendem o tribunal são 56%. Ainda que 62% atestem que o legado da ditadura foi ruim, 25% dizem que a ditadura deixou mais realizações positivas do que negativas. É preciso olhar também o aviso negativo dos números.

Na entrevista à “Época”, Mourão defende os que estão sendo investigados pelo Supremo no inquérito das fake news, dizendo que eles não ameaçam ninguém e que deveriam pagar uma cesta básica e pronto. Totalmente diferente foi o tom usado por ele para definir os que se opõem ao governo. No artigo do “Estadão”, de 3 de junho, chamou os manifestantes contra Bolsonaro de “baderneiros”, “umbilicalmente ligados ao extremismo internacional”. Disse que eles são “caso de polícia e não de política”. No dia seguinte, Bolsonaro os chamou de “terroristas”.

O problema não são apenas os que pedem intervenção militar. Os atos ficaram muito mais importantes quando o presidente participou e os estimulou a seguir adiante. Por que a manifestação pró-ditadura do domingo não teve o mesmo impacto? Porque o presidente não foi. Bolsonaro tem aproveitado os últimos fins de semana para sempre fazer viagens não anunciadas a algum destacamento militar. Primeiro, no entorno de Brasília, neste fim de semana, em Minas Gerais.

Como disse Fernando Gabeira no artigo de ontem neste jornal, a democracia atualmente é comida pelas bordas. É a maneira como o autoritarismo se instala e essa é uma república com muitas tentativas de intervenção militar. O país vem dizendo, de diversas formas, que percebeu o risco.

Gil em festa junina de aniversário cantou com a família clássicos nordestinos. Um, de Dominguinhos e Fausto Nilo, parecia feito agora: “Ô tempo duro no ambiente/ Ô tempo escuro na memória/ O tempo é quente/ E o dragão é voraz/ Vamos embora de repente/ Vamos embora sem demora/ Vamos pra frente que pra trás não dá mais.” Esse duplo dizer aprendeu-se naquele tempo. Milton, no domingo, cantou profundo como se faz em Minas: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”

Pode-se entender disso a pandemia que já matou tantos brasileiros, pode-se entender muita coisa. A delicadeza poética foi afinada na ditadura. A formação de frentes também foi aprendida naquela época. A resistência tem muitos caminhos. O projeto de Bolsonaro é enfraquecer a democracia. Seria estúpido não ver.

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