- Folha de S. Paulo
Quando vemos a alternativa, fica claro que o modelo imperfeito é a melhor escolha
Tive uma surpresa feliz ao ver que a defesa da democracia está em alta na opinião pública, segundo pesquisa Datafolha (fiquei surpreso porque sou naturalmente pessimista quanto à sabedoria das massas).
E eis que, de fato, em um ano e meio de bolsonarismo, movimento que flerta abertamente com a ideia de golpe, o povo dobrou a aposta na democracia e no respeito às instituições.
Setenta e cinco por cento defendem a democracia como melhor forma de governo, 86% são contra a tortura, 80% contra a censura à imprensa e 78% negam que o presidente tenha o direito de fechar o Congresso. Em todos os casos, os números são mais altos do que eram em 2014 e em 2018.
É fácil desmerecer a democracia em abstrato, comparando-a a alguma autocracia idealizada, comandada por homens bons e alinhados com "a vontade do povo" (seja lá o que isso for).
Quando vemos concretamente qual a alternativa a ela —as loucuras do olavismo, as fábricas de fake news, o fim da transparência, a incompetência generalizada, a bajulação do presidente, o corporativismo militar, a arbitrariedade da polícia— fica claro que nossa democracia imperfeita ainda é a melhor escolha.
Ao mesmo tempo, a estabilidade de nossa democracia não é dada como certa: só 49% não veem chance de uma ruptura à ordem democrática.
Sessenta e oito por cento veem ameaça à democracia em protestos que pedem fechamento do Congresso e STF. Assim, cabe perguntar: neste momento, há risco à democracia no Brasil? Tudo indica que não.
Bolsonaro sem dúvida atacou as instituições e os demais Poderes, mas eles não se curvaram. Pelo contrário, impuseram-se com mais força. O Congresso propõe agenda própria e bloqueia iniciativas esdrúxulas do governo federal. A imprensa segue revelando escândalos do governo. E o Supremo, como temos acompanhado, não se intimida de mandar investigar nomes graúdos do bolsonarismo ligados ao gabinete do ódio, associação criminosa para difamar, caluniar, ameaçar e destruir a reputação de desafetos.
Para os que apoiam o presidente, a ameaça à democracia viria de outra fonte: do Supremo e seu inquérito das fake news. Devo dizer que a prisão preventiva de alguém como Oswaldo Eustáquio, cuja profissão consiste basicamente em inventar e espalhar mentiras sobre opositores de Bolsonaro para alimentar uma turba de raivosos nas redes sociais, não me parece ameaçar a liberdade de expressão.
Sua conduta, aliás, é muito mais danosa à liberdade de expressão —e portanto à real democracia— do que o possível vício de origem do inquérito.
O Brasil não tem vocação para o poder absoluto. Talvez por excesso de individualismo, não colocamos projetos políticos de quem quer que seja acima do autointeresse de cada um. Temos longa tradição democrática que, na esfera municipal, remonta ao século 16. Não estamos dispostos a matar por um líder ou uma ideologia (e muito menos a morrer).
Líder messiânico? Gostamos, mas esse Dom Sebastião tem que vir para nos proporcionar a terra prometida, e não exigir sacrifícios. Se não entrega a bonança de mão beijada, que venha o próximo.
Neste momento, Bolsonaro ensaia um recuo tático para não ser derrubado pelos Poderes que tanto ameaçou. Ele esperava, com sua retórica agressiva, inflamar as massas. Aconteceu o contrário: o povo se distanciou do extremismo. Tenho certeza de que o presidente ainda voltará ao ataque: encontrará as instituições ainda mais preparadas para imobilizá-lo e, se necessário, derrubá-lo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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