domingo, 27 de setembro de 2020

Roberto Romano* - As caretas da censura judicial

- O Estado de S.Paulo

Juiz despreza o cidadão comum. O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário

O Estado moderno firma-se desde os séculos 15 e 16. Contra o feudalismo o rei instaura novos modos de administração, das fronteiras aos impostos, da justiça à polícia, dos campi aos arquivos, das coleções incoerentes de livros às bibliotecas. A racionalidade, no entanto, é paga com preço alto. Nobres e clero devem ser comprados com favores, isenção de taxas, privilégios. Até a cor das roupas exibe a “superioridade” dos barões e cardeais. A “gente ordinária de veste” (expressão ainda usada na Corte carioca de João VI) usa o negro com colarinho branco. Quem não pertence à burguesia rica ostenta andrajos.

Analista do poder, o matemático e filósofo Blaise Pascal comenta as roupas e os acessórios para intimidar os “homens comuns”. Existe o costume de ver os reis seguidos de guardas, tambores, serviçais e tudo o que inclina a espinha humana pelo medo e terror. Daí a bajulação: “O caráter da divindade está impresso na face real”.

Os juízes, continua Pascal, “conhecem tal mistério. Suas vestes vermelhas, seus enfeites e arminhos, os palácios onde julgam, as flores-de-lis (nada que ver com o Brasil de hoje), todo um aparato augusto é para eles necessário. Se os médicos não tivessem sotainas e mulas e os doutores não tivessem bonés quadrados e vestes amplas (...) eles jamais teriam engambelado quem não pode resistir. Se tivessem a justiça verdadeira e os médicos a arte verdadeira de curar seriam inúteis os bonés quadrados. A majestade das ciências seria venerável o bastante. Mas eles só têm ciências imaginárias, sendo preciso que as usem tais instrumentos inúteis que ferem a imaginação, com a qual lidam e conseguem respeito”. Termina o pensador: “Os soldados não se fantasiam porque sua parte é mais essencial. Eles se impõem pela força, os demais pelas caretas”. 

Juízes, a exemplo do presidente Schreber – delirante interlocutor de Deus –, desprezam o cidadão comum. O termo usado para designar quem não é juiz é claro: “leigo”, a pessoa “ordinária de vestes” que não pode intimidar com caretas e palácios. Mas as togas se curvam – como nas ditaduras que atormentaram o Brasil – diante das fardas.

O vezo de insultar os não iniciados nos mistérios “da justiça” tem origem teológico-política. Na Igreja primitiva a hierarquia era tênue. Eram valorizados, conforme indica Max Weber, os que se moviam para recordar a iminente volta do Senhor, praticando pobreza, obediência, castidade. Quem não praticava tais virtudes à espera do Juízo Final e não imitava monges e ermitãos integrava a vida cristã conforme seu estado no mundo. Os cidadãos, na Igreja, recebem o título de Christifideles laici: povo fiel a Cristo. Com a burocracia eclesiástica, simultânea à centralização do Estado, o poder hierárquico ficou mais rígido e exclusivo. Se no Estado apenas os dirigentes têm voz, na Igreja só os sacerdotes, bispos e papa merecem acatamento.

O tratado atribuído a Dionísio, o suposto Areopagita – A Hierarquia Eclesiástica –, desenha o cosmos no qual os anjos, arcanjos, padres, nobres e reis estão próximos da Luz Divina. Os leigos, imersos na escuridão, devem calar e obedecer. Daí o costume, hoje abusado por médicos e juristas (bom Pascal!), de aplicar o nome de “leigo” a quem não é iluminado pelo saber sagrado das respectivas corporações. 

Quando o Terceiro Estado (os leigos) exigiu de um monarca francês a prestação de contas sobre as finanças públicas, o clero deu o seguinte parecer: “As finanças reais são como o Santíssimo Sacramento no altar. Só podem conhecê-las os que para tal fim são ordenados”. Com a Reforma luterana a hierarquia eclesiástica desabou, restaurando-se o sacerdócio comum dos fiéis. E como fruto vem a Revolução Puritana inglesa, que institui a accountability, obrigação de governantes, parlamentares, funcionários e... juízes prestarem contas de seus atos ao povo soberano. 

Tal princípio, criado pelos gregos antigos, medra nas Revoluções Americana e Francesa. Aqui, no entanto, dom João VI instaura um poder contra a accountability. Não por acaso, o imperador é dito irresponsável. 

A responsabilidade nos cargos públicos é ignorada no Brasil. A quem respondem os juízes do STF, do STJ e outras Cortes “excelsas”? O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário. O trejeito atual de nossos magistrados é censurar a imprensa, mesmo contra decisões tomadas pelo Supremo Tribunal. O caso Boi Barrica amordaçou o jornal O Estado de S. Paulo. O jornalista Luis Nassif e a Rede Globo são calados por juízes. Ganha quem deveria prestar contas ao contribuinte. Mas os contribuintes são “leigos”, “gente ordinária de vestes”.

Há um livro de jovem, mas erudito, magistrado eleitoral, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, com título exato: Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial (Habitus Ed. 2020). Ele denuncia a vontade de poder dos juízes brasileiros que mudam o sentido da Constituição, legislam usurpando prerrogativas do Congresso e, gradativamente, se imiscuem no Executivo. Haja boné quadrado e caretas!

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da Razão' (Perspectiva)

Nenhum comentário: