Juiz despreza o cidadão comum. O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário
O Estado moderno firma-se desde os séculos
15 e 16. Contra o feudalismo o rei instaura novos modos de administração, das
fronteiras aos impostos, da justiça à polícia, dos campi aos arquivos, das
coleções incoerentes de livros às bibliotecas. A racionalidade, no entanto, é
paga com preço alto. Nobres e clero devem ser comprados com favores, isenção de
taxas, privilégios. Até a cor das roupas exibe a “superioridade” dos barões e
cardeais. A “gente ordinária de veste” (expressão ainda usada na Corte carioca
de João VI) usa o negro com colarinho branco. Quem não pertence à burguesia
rica ostenta andrajos.
Analista do poder, o matemático e filósofo
Blaise Pascal comenta as roupas e os acessórios para intimidar os “homens
comuns”. Existe o costume de ver os reis seguidos de guardas, tambores,
serviçais e tudo o que inclina a espinha humana pelo medo e terror. Daí a
bajulação: “O caráter da divindade está impresso na face real”.
Os juízes, continua Pascal, “conhecem tal
mistério. Suas vestes vermelhas, seus enfeites e arminhos, os palácios onde
julgam, as flores-de-lis (nada que ver com o Brasil de hoje), todo um aparato
augusto é para eles necessário. Se os médicos não tivessem sotainas e mulas e
os doutores não tivessem bonés quadrados e vestes amplas (...) eles jamais
teriam engambelado quem não pode resistir. Se tivessem a justiça verdadeira e
os médicos a arte verdadeira de curar seriam inúteis os bonés quadrados. A
majestade das ciências seria venerável o bastante. Mas eles só têm ciências
imaginárias, sendo preciso que as usem tais instrumentos inúteis que ferem a
imaginação, com a qual lidam e conseguem respeito”. Termina o pensador: “Os
soldados não se fantasiam porque sua parte é mais essencial. Eles se impõem
pela força, os demais pelas caretas”.
Juízes, a exemplo do presidente Schreber –
delirante interlocutor de Deus –, desprezam o cidadão comum. O termo usado para
designar quem não é juiz é claro: “leigo”, a pessoa “ordinária de vestes” que
não pode intimidar com caretas e palácios. Mas as togas se curvam – como nas
ditaduras que atormentaram o Brasil – diante das fardas.
O vezo de insultar os não iniciados nos
mistérios “da justiça” tem origem teológico-política. Na Igreja primitiva a
hierarquia era tênue. Eram valorizados, conforme indica Max Weber, os que se
moviam para recordar a iminente volta do Senhor, praticando pobreza,
obediência, castidade. Quem não praticava tais virtudes à espera do Juízo Final
e não imitava monges e ermitãos integrava a vida cristã conforme seu estado no
mundo. Os cidadãos, na Igreja, recebem o título de Christifideles laici: povo
fiel a Cristo. Com a burocracia eclesiástica, simultânea à centralização do
Estado, o poder hierárquico ficou mais rígido e exclusivo. Se no Estado apenas
os dirigentes têm voz, na Igreja só os sacerdotes, bispos e papa merecem
acatamento.
O tratado atribuído a Dionísio, o suposto
Areopagita – A Hierarquia Eclesiástica –, desenha o cosmos no qual os anjos,
arcanjos, padres, nobres e reis estão próximos da Luz Divina. Os leigos,
imersos na escuridão, devem calar e obedecer. Daí o costume, hoje abusado por
médicos e juristas (bom Pascal!), de aplicar o nome de “leigo” a quem não é
iluminado pelo saber sagrado das respectivas corporações.
Quando o Terceiro Estado (os leigos) exigiu
de um monarca francês a prestação de contas sobre as finanças públicas, o clero
deu o seguinte parecer: “As finanças reais são como o Santíssimo Sacramento no
altar. Só podem conhecê-las os que para tal fim são ordenados”. Com a Reforma
luterana a hierarquia eclesiástica desabou, restaurando-se o sacerdócio comum
dos fiéis. E como fruto vem a Revolução Puritana inglesa, que institui a
accountability, obrigação de governantes, parlamentares, funcionários e...
juízes prestarem contas de seus atos ao povo soberano.
Tal princípio, criado pelos gregos antigos,
medra nas Revoluções Americana e Francesa. Aqui, no entanto, dom João VI
instaura um poder contra a accountability. Não por acaso, o imperador é dito
irresponsável.
A responsabilidade nos cargos públicos é
ignorada no Brasil. A quem respondem os juízes do STF, do STJ e outras Cortes
“excelsas”? O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário. O
trejeito atual de nossos magistrados é censurar a imprensa, mesmo contra
decisões tomadas pelo Supremo Tribunal. O caso Boi Barrica amordaçou o jornal O
Estado de S. Paulo. O jornalista Luis Nassif e a Rede Globo são calados por
juízes. Ganha quem deveria prestar contas ao contribuinte. Mas os contribuintes
são “leigos”, “gente ordinária de vestes”.
Há um livro de jovem, mas erudito,
magistrado eleitoral, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, com título exato: Da
Democracia de Partidos à Autocracia Judicial (Habitus Ed. 2020). Ele denuncia a
vontade de poder dos juízes brasileiros que mudam o sentido da Constituição,
legislam usurpando prerrogativas do Congresso e, gradativamente, se imiscuem no
Executivo. Haja boné quadrado e caretas!
*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões
de Estado e outros estados da Razão' (Perspectiva)
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