quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Supremo deve se preservar para defender a Carta – Opinião | O Globo

Decisões monocráticas tomadas por critérios discutíveis tornam o STF vulnerável aos inimigos

No papel de guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem tido muito trabalho no governo Bolsonaro. O mínimo que se pode dizer a respeito do atual ocupante do Planalto é que ele testa com reiterada frequência os freios e contrapesos da democracia. Talvez a agitação destes tempos explique por que a Corte venha cometendo — também com reiterada frequência — excessos ao tomar decisões, geralmente monocráticas, que ampliam a tensão com os demais poderes, em especial o Executivo.

Exemplo recente é a revogação, pelo ministro Edson Fachin, da eliminação de tarifas sobre importação de armas, decidida pelo Ministério da Economia. Fachin entrou em terreno do Executivo, a que cabe, segundo a lei, deliberar sobre o assunto. Outro exagero foi a determinação do ministro Ricardo Lewandowski para que o governo fixe data para o início da vacinação contra a Covid-19, quando nem sequer existe uma vacina aprovada.

O papel da Corte, não custa lembrar, não é corrigir erros do presidente. É fazer cumprir a Constituição. Toda vez que age movido por conveniência ou oportunidade, mesmo que com a melhor das intenções, o STF se desgasta — e isso é péssimo para a instituição e para a democracia. O ativismo judicial só prejudica a Corte. “Com a politização do Supremo, corre-se o risco de não haver judicialização da política, e sim a politização da Justiça”, diz o advogado Gustavo Binenbojm. “E quem tem tudo a perder é a Justiça.”

Claro que o STF deve ajudar no controle da temperatura da crise política. Mas precisa se preservar como instância máxima do Judiciário. Divergências fazem parte do jogo, mas a Corte não pode recuar um milímetro na aplicação da Carta. Mesmo quando ela é explícita, como na vedação à reeleição dos presidentes das Casas do Congresso na mesma legislatura, pode haver espaço para controvérsia. O problema surge quando a raiz da controvérsia é apenas a animosidade em relação a Bolsonaro.

É verdade que o teste institucional, promovido com frequência pelo presidente e por seu entorno, enseja motivo para reação. Mas não é correto passar ao largo das instituições, como fez o então presidente da Corte, Dias Toffoli, nomeando o ministro Alexandre de Moraes para conduzir um inquérito sobre desinformação sem envolver o Ministério Público. O inquérito em si — assim como o seguinte, sobre as manifestações antidemocráticas — se revelou necessário pelas descobertas que fez. Mas ficou a mancha no STF.

Mais do que nunca, é o momento de a Corte ser criteriosa, sem ser omissa. Um exemplo positivo foi a inquirição da ministra Cármen Lúcia sobre a atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em ajuda à defesa de Flávio Bolsonaro, o Zero Um, no inquérito das rachadinhas. É numa hora de desafio às instituições que o STF precisa se proteger para cumprir a missão prioritária de zelar pela Constituição. Não pode exagerar, sob pena de sofrer desgastes desnecessários.

A lição trazida pelas ameaças à imprensa livre em Hong Kong – Opinião | O Globo

Tentativas de usar a Justiça para intimidar jornalistas precisam ser repudiadas em qualquer lugar

Ameaças à liberdade de expressão têm se tornado mais frequentes no mundo. Nos últimos sete anos, os países em que a situação da imprensa é classificada como crítica aumentaram de 11% para 13% dos 180 analisados pela organização Repórteres Sem Fronteiras. Entre eles, o Irã (173º colocado), que executou no último sábado o jornalista Ruhollah Zam, crítico do regime dos aiatolás exilado na França e capturado numa viagem ao Iraque. Ou a China (177ª), que mantém um sistema de vigilância e censura sem paralelo.

O mais preocupante é a perseguição aos jornalistas se estender a locais onde antes vigorava um clima de liberdade. Nenhum caso é tão eloquente quanto Hong Kong. Quando a primeira-ministra Carrie Lam baixou a nova Lei de Segurança Nacional, à revelia do Parlamento, por determinação do Partido Comunista Chinês (PCC), afirmou que os cidadãos “continuariam a usufruir as liberdades de expressão, publicação, protesto e reunião”. Em vez disso, o que se tem visto é a imposição dos ditames do PCC.

O último lance foi a negativa de fiança ao empresário Jimmy Lai. Preso em agosto depois de anunciar o lançamento em inglês de seu jornal “Apple Daily”, Lai voltou para trás das grades na semana passada, logo depois de receber um prêmio especial da RSF. É um absurdo negar fiança a Lai, um senhor de 72 anos que não oferece risco à segurança, detido apenas por ter opiniões alinhadas com os Estados Unidos. Não há justificativa para a arbitrariedade.

A prisão de Lai se soma à de dezenas de jovens ativistas, condenados sob a acusação de promover os protestos contra Pequim no ano passado. É o caso de lideranças como Joshua Wong ou de Agnes Chow, apelidada de “verdadeira Mulan”, numa referência à heroína popularizada pelo filme da Disney.

Mesmo antes da nova lei, a liberdade de imprensa já declinava em Hong Kong. O empastelamento do “Apple Daily” em agosto e a prisão de Lai apenas reforçaram o clima de medo e autocensura. Entrevistados antes frequentes nas páginas dos jornais hoje se recusam a dar entrevistas, mesmo protegidos pelo anonimato. O governo de Lam fechou o cerco também sobre o conteúdo veiculado em canais de TV e forçou a mudança na gestão daqueles tidos como independentes.

A imprensa profissional já enfrenta um enorme desafio num mundo contaminado por notícias fraudulentas e pela informação de baixa qualidade das redes sociais. Mas nada ameaça tanto a liberdade de expressão e a democracia quanto as ditaduras que tentam controlar a informação à força. Tentativas de usar a Justiça para intimidar o trabalho da imprensa precisam ser repudiadas com veemência em qualquer lugar. Também aqui no Brasil.

Juros, pandemia e expectativas – Opinião | O Estado de S. Paulo

Ata do Copom informa que pandemia, vacinas e política fiscal são sinalizadores importantes para a política de juros do BC

Pandemia, vacinas e política fiscal são sinalizadores importantes para a política de juros do Banco Central (BC), como informa claramente a ata da última reunião do Copom, o Comitê de Política Monetária. A ressurgência da pandemia em vários países avançados é apontada na primeira linha como um risco para a recuperação econômica no exterior. No Brasil, a evolução incerta da covid-19 aparece, alguns parágrafos adiante, como fator de insegurança quanto ao ajuste das contas públicas e ao ritmo da atividade. No médio prazo a vacinação deve favorecer uma recuperação mais forte e segura.

O Brasil do BC e o do presidente Jair Bolsonaro devem ser dois países muito diferentes. O país do presidente está vivendo – ele mesmo garante – um “finalzinho de pandemia”. Além disso, a covid-19 é uma doença pouco preocupante e quem se protege é maricas. Muito mais perigosa será a vacinação. Daí a ideia de cobrar um termo de responsabilidade assinado por quem se submeter à picada. Maior deverá ser o perigo – ele já havia adiantado essa advertência – se a vacina tiver relação com algum laboratório chinês.

Mas a diferença mais chocante aparece na ordem dos valores e das prioridades. Na avaliação do Copom, a doença é um entrave ao crescimento econômico. Seu repique tende a reverter os ganhos de mobilidade, no curto prazo, atrapalhando a recuperação. Está implícita nesse comentário a ideia da proteção da vida como objetivo prioritário. O presidente, ao contrário, sempre pôs em primeiro lugar a sustentação da atividade econômica. Se alguns milhares morrerem nesse jogo, paciência. Afinal, todos devem morrer um dia.

Também a preocupação com as contas de governo contrasta com os interesses do presidente. Ele promete, ocasionalmente, respeitar o teto de gastos e outros indicadores de responsabilidade fiscal. Faz isso, geralmente, para prestigiar seu Posto Ipiranga, o ministro da Economia, quando os conflitos no Executivo se tornam muito intensos. Mas nada faz para eliminar esses conflitos, para desestimular de fato os gastadores – ministros ou parlamentares aliados – e para deixar claro o compromisso com a gestão séria das finanças federais.

Essa omissão do presidente, combinada com sua concentração em objetivos eleitorais e familiares, tem sido frequente causa de inquietação no mercado. Foi também, por vários meses, um dos mais importantes fatores de instabilidade cambial e, portanto, de elevação de preços internos, mas nenhum comentário incluído na ata do Copom explicita esses pontos. A ata explicita, no entanto, a mudança das expectativas quanto à inflação.

O texto assinala uma reversão dessas expectativas. As projeções do mercado têm apontado inflação mais próxima da meta no horizonte considerado relevante. Para 2022 já se aponta uma inflação “em torno da meta”, fixada em 3,50%, com 1,5 ponto de tolerância para mais ou para menos.

Com o avanço no ano de 2021, lembra a ata, 2022 ganhará importância para as decisões sobre os juros. Um tanto óbvia na aparência, essa observação introduz uma advertência de peso: as condições de atuação do Copom poderão mudar. Isso pode justificar o abandono de uma cláusula adotada a partir de agosto, a forward guidance ou prescrição antecipada. Com essa cláusula, o Copom passou a indicar a manutenção dos juros enquanto as expectativas fossem de inflação abaixo da meta e o regime fiscal estivesse assegurado.

O abandono da forward guidance poderá ocorrer sem aumento de juros, mas o mercado perderá um componente de segurança para suas decisões. Mesmo sem alta dos juros básicos, as condições de financiamento do Tesouro poderão piorar, se os emprestadores se julgarem menos seguros. O comportamento do governo, especialmente do presidente, pode afetar a expectativa de inflação e também o custo da dívida oficial. O Brasil estaria bem mais seguro se o presidente Bolsonaro percebesse esses fatos e se, além disso, decidisse dar atenção a algumas funções típicas da Presidência, como proteger a saúde financeira do setor público.

Convergência de devaneios – Opinião | O Estado de S. Paulo

Fica clara em pesquisa a relação entre o negacionismo e a aprovação a Bolsonaro

As imagens chocam: aglomeração na Rua 25 de Março, um dos principais centros de compras dos paulistanos; praias, pontos turísticos e bares cheios no Rio de Janeiro; festas em várias cidades, com lotação esgotada e dress code que dispensa máscara. Nem parece que estamos em meio a uma pandemia de covid-19 que já matou mais de 180 mil compatriotas e dá sinais claríssimos de recrudescimento, ameaçando levar o sistema público de saúde ao colapso. Eis o sintoma de um avançado estado de negação, observado também na mais recente pesquisa do Datafolha sobre a popularidade do presidente Jair Bolsonaro e sobre sua atuação no enfrentamento da pandemia.

Desde o início da crise, o presidente Bolsonaro tudo fez para minimizar a pandemia. É ocioso recordar as tantas vezes em que o chefe de governo, de quem se espera o bom exemplo para seus governados, estimulou aglomerações, fez pouco das orientações de seu próprio Ministério da Saúde e atacou autoridades que determinaram medidas restritivas para conter o vírus.

É evidente que, ao agir assim, Bolsonaro, a título de preservar a atividade econômica, ajudou a disseminar no País a ilusão de que o vírus não é tão letal e reforçou a falsa sensação de que a pandemia está no “finzinho”, segundo suas próprias palavras. Era tudo o que milhões de brasileiros ansiosos por retomar o quanto antes seu trabalho e sua renda – sem falar de sua rotina de festas e confraternizações – queriam ouvir.

Assim, compreende-se que 52% dos entrevistados pelo Datafolha isentem Bolsonaro de responsabilidade pelos milhares de mortos pela pandemia e 30% considerem “ótima” ou “boa” sua gestão da crise, mesmo diante da escandalosa inépcia do governo em todos os aspectos relacionados com a crise.

Esmiuçando-se um pouco mais os números da pesquisa, a relação entre negacionismo e aprovação a Bolsonaro fica ainda mais clara: dos entrevistados que dizem não ter alterado sua rotina em razão da pandemia, 54% manifestam apoio ao presidente; além disso, entre os brasileiros para os quais a pandemia está acabando, 38% confiam em Bolsonaro, enquanto entre os que entendem que a pandemia vai piorar 43% não confiam no presidente.

Assim, aqueles que se esforçam para acreditar que a pandemia já acabou, seja pela necessidade de sobrevivência, seja pela ânsia de voltar a ter vida social, encontram no discurso de Bolsonaro a confirmação de suas fantasias. Não é fora de propósito imaginar que essa convergência de devaneios esteja alimentando tanto as aglomerações irresponsáveis como a aprovação de cerca de 1/3 dos brasileiros à desastrosa administração da pandemia por Bolsonaro.

O desejo de fugir da realidade, tão evidente nessa amostra da população, se confirma na avaliação sobre Bolsonaro e seu governo em geral. Nada menos que 37% dos entrevistados pelo Datafolha consideram seu governo “ótimo” ou “bom”, a despeito da inação em praticamente todos os setores relevantes para o País e de sua dedicação exclusiva à reeleição e à proteção dos filhos.

Ainda há uma conexão direta entre essa avaliação positiva do governo Bolsonaro e o auxílio emergencial concedido aos que perderam renda na pandemia: na Região Nordeste, uma das mais afetadas pela crise, a rejeição ao presidente caiu para 34%, ante 52% em junho, como efeito direto da ajuda federal. No interior do País, a rejeição a Bolsonaro é de apenas 26%, ante 40% nas regiões metropolitanas.

Ressalte-se que a popularidade de Bolsonaro – aprovação de 37%, ante rejeição de 32% – ainda é muito baixa. Com cerca de dois anos do primeiro mandato, o atual presidente só não é mais rejeitado do que Fernando Collor – que, em março de 1992, ano de seu impeachment, atingia rejeição de 48% e aprovação de 15%.

Ainda assim, é espantoso que haja tantos brasileiros – entre os quais uma grande maioria de pobres e de pessoas com baixa escolaridade, mas também um número expressivo de empresários (56%) – dispostos a considerar “ótima” ou “boa” uma administração que hoje já pode reivindicar o título de pior da história do País. Isso dá a medida da confusão moral que engolfa o Brasil.

A Cúpula de Ambição Climática – Opinião | O Estado de S. Paulo

Em relação aos quatro anos anteriores, as promessas nitidamente se robusteceram

No último dia 12, há exatos cinco anos do Acordo Climático de Paris, líderes de mais de 70 países se reuniram na Cúpula de Ambição Climática para renovar seus compromissos. Em relação aos quatro anos anteriores, as promessas nitidamente se robusteceram. Ainda é cedo para saber se efetivamente serão cumpridas, mas, se forem, os próximos anos podem testemunhar uma importante mudança de paradigma.

Quando o Acordo foi firmado, havia um reconhecimento tácito de que os compromissos de então eram insuficientes para atingir a meta de estabilizar a média da temperatura global em 2°C – idealmente 1,5°C – acima dos níveis pré-industriais. Assim, foi pactuada uma cláusula determinando que a cada cinco anos as partes se reuniriam para ponderar os avanços tecnológicos, econômicos e sociais e oferecer metas mais ambiciosas.

Desde então, os signatários entraram em muitos impasses sobre as regras do Acordo – notadamente, em relação ao mercado de carbono –; as emissões seguem crescendo – o último quinquênio foi o mais quente de que se tem notícia e as catástrofes naturais parecem se intensificar –; e o segundo maior emissor de gás carbônico, os EUA, abandonou o pacto.

Diante disso, é-se tentado a concordar com a ativista Greta Thunberg: “Alvos hipotéticos são estabelecidos, e grandes discursos são oferecidos. Mas, quando se trata da ação imediata, ainda estamos num estado de completa negação”. Mas, se a revolta e a impaciência são compreensíveis – talvez mesmo desejáveis – numa jovem de 17 anos, elas não bastam para uma análise precisa dos fatos nem para sustentar decisões.

Nos últimos meses Japão, Coreia e, sobretudo, China, a maior emissora do mundo, anunciaram metas de emissão zero até a metade do século. Um dia antes da cúpula, a União Europeia revisou a sua meta de redução até 2030 de 40% para 55% em relação aos índices de 1990. O Reino Unido se comprometeu com uma redução de 68%, sendo o primeiro país a ficar em linha com as metas do Acordo de Paris. O presidente eleito norte-americano, Joe Biden, já declarou que o meio ambiente é prioridade e que pretende reintegrar os EUA ao Acordo e apresentar um plano climático de US$ 2 trilhões ao Congresso. Reunidas, essas nações respondem por quase 2/3 das emissões globais.

“Se esses países atingirem suas metas, então o Acordo de Paris está ao alcance de novo”, disse Niklas Höhne, professor de mudanças climáticas da Universidade Wageningen, na Holanda. Em 2009, estimava-se que, se todos os compromissos existentes fossem atingidos, o aumento do aquecimento chegaria a 3,5°C. “A grande virada foi a China realmente se movendo rumo ao nível zero, e isso criou um efeito dominó para que outros se juntassem.”

Este efeito não implica somente Estados. Desde o Acordo de Paris, a tecnologia verde deu grandes saltos e no último ano blocos corporativos estabeleceram padrões mais rigorosos. A energia limpa está mais barata e a transição dos combustíveis fósseis está se acelerando. “De algum modo as estrelas estão se alinhando de novo”, disse Rémy Rioux, da Agência de Desenvolvimento francesa, um dos principais negociadores do Acordo de Paris. Com as mudanças na Europa, EUA e China, “estamos provavelmente entrando em uma nova fase, onde o multilateralismo retomará sua tração”.

O Brasil, contudo, segue alheio a esse movimento. O País chegou a apresentar uma revisão de metas a uma semana da cúpula. Mas, segundo a ONG Observatório do Clima, essa revisão é “imoral”, porque oferece um esforço adicional de apenas 6% em relação à meta de 5 anos atrás. Pelos cálculos da organização, a redução de 43% das emissões até 2030 proposta pelo Brasil, em comparação com os índices de 2005, se fosse compartilhada na mesma proporção pelos demais países, levaria a um mundo cerca de 3°C mais quente.

Assim, a irritação da jovem Greta Thunberg talvez seja exagerada em relação ao mundo, mas não em relação ao Brasil. Claramente, os organizadores da cúpula concordam. Tanto que o País foi vergonhosamente excluído da lista dos participantes, por não apresentar metas suficientemente ambiciosas.

Nova e grave suspeita – Opinião | Folha de S. Paulo

Governo precisa esclarecer sinais de uso da Abin em defesa do filho de Bolsonaro

O que diferencia uma república democrática de uma monarquia absolutista ou de uma ditadura é a noção de que a autoridade máxima é apenas mais um cidadão —“primus inter pares”, o primeiro entre iguais, diziam os romanos.

Não se dá ao governante republicano o direito de valer-se do cargo para favorecer parentes, amigos ou correligionários. Se o faz, no Brasil, infringe dispositivos da lei 1.079, de 1950, que define os crimes de responsabilidade, e do Código Penal. É nesse cipoal que o presidente Jair Bolsonaro pode, mais uma vez, ter caído.

Mostra-se extremamente séria a suspeita, levantada em reportagem da revista Época, de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tenha produzido ao menos dois relatórios que orientam o primeiro filho, senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), sobre estratégias para tentar anular as investigações de que é alvo.

O parlamentar já foi denunciado pelo Ministério Público fluminense sob acusação de participar de esquema de “rachadinha” —vale dizer, desvio de recursos públicos em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio.

O diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, ao qual a agência é subordinada, negam qualquer irregularidade.

Entretanto a defesa do senador confirmou à revista a existência dos relatórios, um dos quais traz, sob o campo “finalidade”, frase que é quase uma confissão: “Defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”.

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, deu a Ramagem e a Heleno um prazo para se explicarem. Até o procurador-geral da República, Augusto Aras, que costuma usar termos edulcorados sobre a primeira família, classificou a suspeita como grave.

Com efeito, a confirmar-se o teor da reportagem, o governo terá mobilizado sua estrutura, que deveria servir unicamente ao interesse público, para resolver um problema pessoal do filho do presidente. Pior, trata-se de um caso em que o interesse público está na investigação do senador.

Em termos mais técnicos, afinal, a tal “rachadinha” pode corresponder aos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e pertencimento a organização criminosa.

Mesmo na hipótese de irregularidade nas apurações, a Abin jamais poderia ter sido acionada para socorrer o filho do presidente. O caso demanda esclarecimentos imediatos —de um governo que já precisa se explicar sobre as acusações de intervenção indevida do Palácio do Planalto na Polícia Federal.

Brasil em baixa – Opinião | Folha de S. Paulo

País cai 5 posições no ranking do IDH, com renda e educação em avanço lento

A nova edição do Índice de Desenvolvimento Humano compilado pelas Nações Unidas traça um retrato desalentador do Brasil.

Em que pese o avanço da pontuação, que passou de 0,762 em 2018 para 0,765 em 2019, numa escala que vai de 0 a 1, o país retrocedeu cinco posições no ranking global e ocupa a pouco honrosa 84ª colocação entre 189 nações e territórios.

No estrato superior do IDH, com índice de 0,8 ou mais, estão 66 países, com liderança de Noruega, Suíça, Irlanda, Hong Kong e Islândia. No grupo de baixo desenvolvimento (abaixo de 0,55), há 33 nações, e as cinco piores são africanas: Burundi, Sudão do Sul, Chade, República Centro-Africana e Níger.

Considerada apenas a realidade regional, a situação nacional tampouco parece melhor. Ultrapassado por Colômbia e Peru, o Brasil caiu para o 7º lugar entre os latino-americanos. Mais preocupante, viu os países que já estavam à sua frente (Argentina, Uruguai, México e Cuba) melhorarem suas posições.

A lenta evolução dos indicadores brasileiros de bem-estar social fica evidente também em prazos maiores. Com relação a 2014, ano citado no relatório para efeito de comparação, o país perdeu duas posições, embora sua nota tenha aumentado em 0,009.

Dentre os critérios avaliados pelo IDH, o Brasil apresentou ou melhora discreta —caso da expectativa de vida (75,9), da média dos anos de estudo (8) e da renda per capita (US$ 14.263)— ou estagnação, como no tempo previsto de escolaridade (15,4 anos).

No que tange à renda, contudo, o incremento ocorrido em 2019 ainda está longe de superar as perdas resultantes da recessão econômica dos últimos anos, mantendo o indicador abaixo de 2010.

Mais recentemente, o relatório passou a calcular uma variante do IDH que leva em conta a desigualdade de renda. Aqui se revela muito da iniquidade que ainda perpassa a sociedade brasileira: o país cai nada menos que 20 posições na classificação, com o vexaminoso índice de 0,570.

O Brasil também faz má figura quando se avalia a desigualdade de gênero, ocupando apenas a 95ª colocação nesse ranking.

Como reúne dados apurados em 2019, o relatório não reflete os impactos provocados pela Covid-19. Estima-se, contudo, que a média geral dos países possa vir a regredir 0,02 ponto no relatório do próximo ano. Pior para quem já claudica na marcha do desenvolvimento.

Uso do Estado para defesa de Flávio na mira do STF – Opinião | Valor Econômico

Com Luiz Fux no comando do Supremo é certo que as investigações prosseguirão até o fim - e elas podem trazer dissabores aos Bolsonaros

Acumulam-se os sinais de que o aparato do Estado está sendo usado ilegalmente para por um fim às investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente da República, no escândalo das “rachadinhas” no qual estaria envolvido como deputado estadual no Rio. Não é normal, nem lícito, que dirigentes dos órgãos de segurança estatais, como o Gabinete de Segurança Institucional e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), se reúnam com advogados de Flávio, na presença do presidente da República. Na sexta-feira, a revista Época revelou que a Abin está ativamente engajada na empreitada, sugerindo estratégias para a defesa e demissão de servidores da Receita. Anteontem, a ministra Cármen Lúcia deu prazo de 24 horas para que GSI e Abin prestem informações sobre o assunto.

Na tétrica reunião de 22 de abril, Bolsonaro deixou claro que queria trocar a chefia da Polícia Federal para impedir que sua família fosse incomodada. O então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, paralisou por meses o uso de relatórios do Coaf em qualquer investigação sobre movimentação suspeita de dinheiro, por pedido da defesa de Flávio. Sob a alegação polêmica de privilégio de foro, o caso foi parar no Tribunal de Justiça. A defesa do senador, amparada no sigilo do processo, obteve aval da Justiça para impedir que a TV Globo divulgasse informações sobre o caso.

Flávio Bolsonaro é acusado de liderar organização criminosa, praticar peculato, lavagem de dinheiro e ocultar patrimônio. Seu braço direito nas operações foi Fabrício Queiroz, detido pela polícia em uma das residências de Frederick Wassef, então advogado do presidente Jair Bolsonaro.

A estratégia sugerida pela Abin, emitida em dois relatórios a que Época teve acesso, era obter a anulação do processo das “rachadinhas” por meio da “neutralização da estrutura de apoio”. Isto é, afastar do caso três funcionários da Receita Federal, entre eles, Christiano Paes, que o Diário Oficial da semana passada deu como exonerado do cargo “a pedido”. Para a tarefa, bastaria uma “canetada do Executivo”, sob decisão do pai de Flávio, já que os servidores ocupavam cargos de confiança.

Entre os motivos alegados pela defesa de Flávio está o do suposto compartilhamento ilegal de dados obtidos sem autorização na Receita por funcionários que tinham acesso a eles. Christiano nunca foi acusado diretamente pela defesa de Flávio, mas foi acusado de intromissão ilegal em outros casos. A outra parte da estratégia era envolver órgãos do governo, como a Corregedoria Geral da União e a Advocacia Geral da União, sob comando do Executivo, para que assumissem a causa particular do filho do presidente como se fosse pública.

O diretor geral da Abin é Alexandre Ramagem, indicado pelo presidente para ocupar o comando da Polícia Federal, no episódio que resultou na saída do ministro da Justiça, Sergio Moro, do governo. Bolsonaro ainda não desistiu da ideia, que enfrenta novos contratempos. O presidente, possivelmente acreditando que a investigação sobre interferência na PF, por objetivos particulares e nada republicanos, está moribunda, recusou-se a prestar depoimento, com apoio da Procuradoria Geral da República. O relator, o ministro Alexandre Moraes, do STF, disse que Bolsonaro não pode se furtar a um depoimento, presencial ou por escrito - a questão está em julgamento pelo Supremo.

Bolsonaro também parecia depositar esperanças na fidelidade do governador interino do Rio, Cláudio Castro - que substitui seu desafeto, Wilson Witzel -, em escolher na lista tríplice para o comando do MP fluminense o procurador Marcelo Monteiro, admirador do presidente. No entanto, Monteiro foi o quarto mais votado e ficou fora, pois, ao contrário de Augusto Aras, procurador-geral da República de Bolsonaro, que não participou de eleição e foi escolhido, a obrigatoriedade de optar por um dos nomes da lista está inscrita na Constituição do Estado.

Outros inquéritos atingem os membros da família. Carlos Bolsonaro, suspeito de participar do gabinete do ódio que se hospeda no Planalto, foi citado mais de 40 vezes no inquérito que investiga a proliferação criminosa de fake news. Essas apurações se ligam a outro inquérito do STF que busca saber quais são as fontes de financiamento dos atos antidemocráticos recentes e a origem do dinheiro. Com Luiz Fux no comando do Supremo é certo que as investigações prosseguirão até o fim - e elas podem trazer vários dissabores aos Bolsonaros.

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