Sonia Racy / O Estado de S. Paulo
Nas suas sete décadas de vida pública, somadas a uma intensa vida acadêmica, Fernando Henrique Cardoso* viu um pouco de tudo na história do País. Ao passar adiante o poder em 2003 – depois de oito anos como presidente –, a inflação havia sido domada, as contas estavam em ordem e a economia pronta para crescer. Neste final de 2020, perto de completar 90 anos, ele vê a soma de desafios que enfrentam os brasileiros – na saúde, na educação, na economia – e se mostra cauteloso quando perguntado se o Brasil podia estar melhor. “É difícil prever. Mas poderia haver uma compreensão maior do sofrimento dos outros. À medida que você não se solidariza, paga o preço.” E põe o dedo na ferida: “A sensação que (os governantes) transmitem é que eles não são capazes de ouvir. O presidente principalmente, né? Tem verdades absolutas, vai para a ideologia. Acho isso perigoso”.
O
ex-presidente, no entanto, não leva a sério as suspeitas de que o
presidente Jair Bolsonaro esteja
sonhando com um governo autoritário. “Temos os tribunais, o Congresso, a mídia, o clima é de
liberdade. O que eu acho é que ele não tem muita noção, não sabe lidar com
aquilo lá. Mas não há projeto autoritário.”
A
entrevista para o programa Cenários aconteceu na mesma semana em
que morreu Joseph Safra, presidente do grupo e velho
conhecido de FHC (na quinta-feira, dia 10, aos 82 anos). “Além de meu amigo,
perde o sistema financeiro um líder e a sociedade alguém que fez muito.
Generoso no apoio a iniciativas, será sempre lembrado. Em nome da fundação que
dirijo expresso à família nossos sentimentos”, escreveu o ex-presidente no
seu Twitter. Veja a entrevista abaixo.
Como
o sr. vê o mundo pós-pandemia, se é que a pandemia vai passar?
Primeiro,
preciso acreditar que ela vai terminar, porque ela vai terminar. Meus pais
falavam da gripe espanhola,
na qual morreu muita gente. E o bichinho prefere matar gente velha. Eu fico em
casa com medo, mas acho que dá para sobreviver. Agora, a economia será bastante
afetada, o tal novo normal vai ser a recuperação do que perdemos, não só no
Brasil. E acho que não vai ser tão rápido assim.
Tem
muita gente criticando a conduta do presidente Bolsonaro. Acha que eles
poderiam ter feito coisa diferente do que fizeram?
Veja, essa pandemia não depende de governos, eu passei por crises que não dependiam de mim, embora o povo acabe achando que o governo é o culpado. Agora, não tem cabimento trocar tanto de ministro da Saúde no meio de uma pandemia. E não tem cabimento esse descrédito, Não é uma gripezinha, é uma coisa grave.
Se
ele tivesse agido de outro modo, seríamos menos afetados?
É
difícil prever. Mas poderia haver uma compreensão maior do sofrimento dos
outros. As pessoas precisam que os poderosos sejam solidários com suas
tragédias. À medida que você não se solidariza, paga o preço. Se continuar como
está, já está marcado praticamente que o presidente e sua família não ligam
muito para a epidemia. E tá todo mundo vendo, todo mundo com medo.
As
pesquisas têm mostrado que, somando ótimo, bom e regular, Bolsonaro tem 70%. É
uma coisa que impressiona. Como me disse um cientista político, “com regular
você passa de ano...”
Pode
passar, mas depende do outro. E é muito cedo para isso. O presidente tem sempre
o poder, ele não perde a maioria de repente, isso é um processo e esse processo
depende sempre de quem com quem, A contra B ou C. Quando tivermos isso
concretamente, saberemos quais os efeitos dessa... não digo inação, mas
confusão, como transpareceu ao País. A desatenção foi grande.
Temos
um presidente que, pelo que se vê, não se inteira das situações, não olha para
o outro?
Olha,
nunca vi o presidente Bolsonaro na minha vida. Não dava atenção a ele no
Congresso porque ele gritava muito, era muito corporativista, queria aumento de
salário para os militares, essa coisa toda. Então, não sei como ele é como
pessoa. Mas nos atos, ele é um ator e sua ação foi captada pelos que formulam a
opinião pública como se fosse desatenção. Terá sido? Não sei dizer. Não quero
cometer injustiça. Quando eu era presidente vi muitos julgamentos precipitados.
Não quero fazer o mesmo com o presidente Bolsonaro.
Quando
o sr. assumiu como ministro da Fazenda, eu fui a primeira a entrevistá-lo para
o ‘Estadão’. E lhe perguntei como se sentia assumindo um cargo daquele tamanho
com a economia super ruim... Como vê hoje aquele momento?
A
confusão era grande. Eu estava no Itamaraty,
um lugar confortável... Mas eu tinha uma formação de História Econômica,
trabalhei na Cepal, não era completamente jejuno na matéria. Se pudesse
escolher, eu não escolheria ser ministro da Fazenda. Porque teria de matar o
dragão da inflação e se você não sabe como fazer isso, tem de aprender. Precisa
ter capacidade de decisão e uma certa humildade para ouvir o outro. O
presidente Bolsonaro passa a impressão de que não presta atenção. Não sabe, mas
não liga. Hoje, por exemplo, eu não falo nada sobre pandemia, a não ser o medo
que eu tenho.
Quando
decidiu fazer o Plano Real, o que o levou a bancar essa decisão?
Primeiro,
as pessoas que trabalhavam comigo eram muito competentes. Discutiam muito, e eu
ouvia as discussões. E eu tinha influência com o presidente Itamar (Franco), ele me deu esse poder
e eu o usei falando com o povo. Minha função no Plano Real foi muito mais a de um
comunicador. E a população confiava. Você não sai de uma entalada como a que
temos hoje, como tínhamos naquela época, sem que transmita confiança. Se você
erra o caminho, apanha. Se acerta, fica glorioso. Eu fui eleito presidente por
causa disso.
O
sr. escolheu ser sociólogo, sinal de que presta atenção no outro, né?
Eu
fui sociólogo sobre o negro no Brasil, andei muito em favelas. Aprendi muito
com o professor Roger Bastide,
que era francês. Ele vivia num favelão que tinha aqui em frente ao meu
trabalho, chamava-se Buraco
Quente. Nós íamos lá, ele mascando charuto, parecia que não
entendia nada, mas entendia tudo. Quando eu era presidente, para não ficar
perdido, o que eu fazia? Falava com o cara que limpava a piscina, com o garçom
do palácio (do Alvorada),
com uma empregada chamada Dalina.
E um dos motoristas também. Porque se você não sente a população... A gente que
vai falar com o presidente vai por um interesse, e não fala necessariamente a
verdade. Ou fala de modo que o outro lado não fique melindrado...
O
sr. conseguia detectar quando alguém mentia?
Eu
percebia. Veja, eu tive um amigo na Escola
Politécnica, o Camargão,
ele dizia uma coisa que me marcou: “Olha, o problema não são os burros, o
problema são os malandros. Porque eles não são malandros o tempo todo”. Isso
ficou na minha cabeça. Às vezes, o malandro diz uma coisa verdadeira e é
importante você dar atenção. Não sei como são os poderosos de hoje, mas a
sensação que transmitem é que eles não são capazes de ouvir. O presidente
principalmente, né? Tem verdades absolutas, vai para ideologia. Acho isso
perigoso.
Acredita
que a gente sofre o perigo de partir para um outro tipo de regime?
Perigo
de reversão sempre existe, mas não creio que estejamos na iminência de uma
coisa desse tipo. Temos os tribunais, o Congresso, a mídia, o clima é de
liberdade. O que eu acho é que ele não tem muita noção, não sabe lidar com
aquilo lá. Mas não há projeto autoritário.
Muita
gente diz que o povo brasileiro é amável, criativo, e também que é preguiçoso,
que não tem senso de coletividade. O que o sociólogo FHC diz disso?
Não
compartilho dessas ideias. Aqui o povo é trabalhador, sofre muito, trabalha
muito. Não pense que é só em São Paulo,
no Brasil todo é assim. Morei na França, nos Estados Unidos,
vejo que o Brasil é muito mais americano que europeu. Não temos o sentimento de
hierarquia que têm os franceses, por exemplo.
Acha
que a desigualdade social aqui é maior que em outros países? Ela foi produzida
por um sistema que não conseguiu diminuí-la?
Comparativamente,
aqui tivemos a escravidão, né? A minha babá era filha do escravo do meu bisavô.
E isso, enfim, é tido como natural. Você vê a desigualdade, a pobreza, você
naturaliza. Esse é o problema mais grave que temos, é você não perceber. O
brasileiro não percebe a existência de tanta diferenciação, tanta desigualdade.
Na
pandemia ele percebeu, não?
Se
a pandemia deixar uma lição positiva, é essa. Ela pega todo mundo.
Por
toda sua vivência pessoal, acha que capitalismo com democracia é uma receita
que deu certo?
Veja,
onde foi que deu mais certo do que capitalismo com democracia? É difícil. Então
tem de dizer que sim, que deu certo. Até por causa dessa nossa desigualdade,
que vai ser prejudicial não só para um ou outro, mas para todas as pessoas. Nos
Estados Unidos, ao contrário, existe um sentimento de igualdade. Eles
conseguiram avançar mais, generalizaram o capitalismo mais do que nós. Aqui
existe ainda a mentalidade de que cada um faz por si e Deus por todos. Aqui o
sujeito sempre pensa em um pedido, um favor, uma proteção, coisa que não
contribui para um sentimento igualitário. E o capitalismo precisa de igualdade,
tem de ter programas que visem aos mais pobres. O capitalismo sozinho não
resolve isso.
Estamos
indo para um final de ano atípico, que mensagem o sr. deixaria nessa virada?
O
que acho importante é preservar a liberdade e a democracia. E emprego também,
pois ninguém vive só do ideal. Tem de fazer andar a economia, produzindo
integração social. Fácil de falar, sabemos, e difícil de fazer.
E
desejar que todos consigam ser mais humanos e menos tecnológicos, né? Olhar
para o outro...
Eu
sou pouco tecnológico, então quanto menos, para mim, melhor – mas acho que o
mundo vai ser mais tecnológico e tem de ser humano a despeito disso. É outro
tipo de humanidade, mas precisamos manter essa humanidade.
*Sociólogo e professor pela USP, exilado (1964 a 1968), Senador, ministro do Exterior e da Fazenda, presidente da República (1994-2002). Autor de 29 livros, é presidente honorário do PSDB e imortal pela Academia Brasileira de Letras.
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