Presidente dos EUA tem oportunidade de converter vacina em bem público global
George
W. Bush será sempre lembrado pelo desastre humano e geopolítico que provocou
com a guerra no Iraque. Contudo, uma iniciativa singular do ex-presidente
salvou algo como 17 milhões de vidas: o Pepfar
(Plano Presidencial Emergencial para Assistência à Aids). Joe Biden tem
a oportunidade de se inspirar no plano de Bush para liderar a imunização global
contra a Covid-19.
O Pepfar
nasceu em maio de 2003, à sombra da invasão do Iraque, que começara dois meses
antes. Sob a coordenação do Departamento de Estado, o programa
direcionou, de lá para cá, mais de US$ 85 bilhões para os países foco e para o
Fundo Global de Combate à Aids. A lúgubre curva de mortes por Aids na África
Subsaariana começou a ser achatada graças aos recursos e à assistência técnica
providenciados pelos EUA. O modelo do Pepfar oferece a melhor resposta
americana à "geopolítica vacinal" chinesa.
Segundo estimativas do Duke Global Health Institute, os países ricos, que abrigam 16% da população mundial, contrataram 60% das vacinas prometidas até agora. A iniciativa Covax, da OMS, destinada a prover imunização global, prevê a entrega, até junho, de apenas 140 milhões de doses para a África, onde vive 1,3 bilhão de pessoas. A célere vacinação da população mundial é um imperativo moral. Mas é, igualmente, a única ferramenta capaz de domar a pandemia, reduzindo as probabilidades de surgimento de incontáveis mutações do vírus pela persistência prolongada dos contágios. "Ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo", explica o slogan da Covax.
O
triunfo do nacionalismo vacinal teria efeito bumerangue, castigando tanto os
países pobres quanto os ricos. A União Europeia, apesar da insistência na
retórica da solidariedade global, não parece preocupada com isso. A Comissão
Europeia tenta ocultar seu atraso na imunização com
ataques despropositados à AstraZeneca, única farmacêutica que distribui
vacinas a preço de custo, e com a ameaça de bloquear a exportação de doses
produzidas no seu território. Sob Trump, os EUA agiram ainda pior, abandonando
a OMS e negando-se a contribuir com o financiamento da Covax.
A
China opera no vácuo gerado pelo nacionalismo hipócrita de americanos e
europeus. O
governo chinês definiu suas vacinas como bens públicos globais e lançou-se a
uma diplomacia da imunização, estratégia seguida também pela Índia.
Contudo, os discursos humanitários chineses e indianos mal escondem a cuidadosa
seleção dos países beneficiários, que obedece a nítidas prioridades de política
externa.
Biden
promete patrocinar, ainda em 2021, uma "cúpula das democracias".
O conceito, em estágio inicial de formulação, inscreve-se na moldura da
rivalidade global entre EUA e China. Seria uma articulação diplomática
destinada a contrapor os valores das democracias representativas ao sistema de
poder totalitário. A ideia enfrenta uma coleção de dificuldades práticas. Mas,
para além delas, como superar a percepção de que o conclave de democracias
ricas forma o mapa completo das nações privilegiadas pelo acesso preferencial
às vacinas?
Os
EUA só podem triunfar na "guerra de valores" se conseguirem provar
que a democracia funciona melhor que a tirania, especialmente quando o mundo
enfrenta uma dramática emergência sanitária. A
superpotência injeta nos seus cidadãos vacinas de alta tecnologia, baseadas em
mRNA, que tem elevada eficácia e cuja fabricação é mais simples e rápida.
Estima-se que, com meros US$ 4 bilhões e uma rede de parcerias
público-privadas, o governo americano poderia instalar capacidades produtivas
suficientes para imunizar a população mundial no horizonte de um ano.
Os chineses dizem que a vacina deve ser um bem público global. Biden tem a oportunidade de converter essa visão em realidade. É bem melhor que reunir os acumuladores de vacinas numa redoma sanitizada.
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