sábado, 22 de maio de 2021

Eurípedes Alcântara - A democracia e a paz

- O Globo

O conflito entre israelenses e palestinos é, há décadas, a mais complexa questão internacional. Um cessar-fogo entre os dois lados, como o desta semana, ocorre sempre por pressões externas. Os líderes da região vicejam na guerra. Sua força parece aumentar apenas com o rugir dos tanques, o macabro assobio dos mísseis e com o calor da retórica belicista. Uma economia de guerra prospera de ambos os lados, tornando a paz genuína e duradoura uma miragem. Já se tentou de tudo para parar essa marcha da insensatez — menos a democracia.

As tiranias são as maiores ameaças à paz. Elas esmagam todas as tentativas de coexistência pacífica. O estudioso palestino Edward Said criou, com a ajuda do maestro judeu Daniel Barenboim, a Orquestra Divan, composta por jovens músicos palestinos e israelenses unidos pela música. Demonizada pelo Hamas, grupo militar que governa a Faixa de Gaza, e condenada pelo BDS, movimento internacional que preconiza o boicote econômico, acadêmico, cultural e político de Israel, a Orquestra Divan sobrevive apenas pelas doações de voluntários em todo o mundo.

Quando falei com o Edward Said em seu escritório na Universidade Columbia em 1999, o câncer linfático que o mataria em 2003 já estava bem avançado, mas a sonda de oxigênio não o impediu de defender com fervor sua tese central sobre as possibilidades de convivência produtiva entre Israel e a Palestina sem interferências “colonialistas”. Timothy Brennan acaba de publicar uma biografia, ainda sem tradução para o português, desse pensador complexo e radical em seu humanismo estoico: “Places of Mind: A Life of Edward Said”. O título, “lugares mentais”, faz referência a Said se descrever como um “palestino metafórico”.

Outro humanista acima das divisões de raça, ideologia e religião, o médico israelense Asher Moser manifestou seu temor de que o avanço da insanidade nos dois lados da fronteira enterre a magnífica experiência dos bancos de sangue comuns a árabes e israelenses.

— O sangue é a única área onde existe fraternidade completa entre judeus e árabes neste país, com a cooperação entre judeus e palestinos nos territórios — disse Moser.

Os bancos de sangue comuns surgiram depois de um quase impensável evento ocorrido em 2006, quando um terrorista árabe se explodiu em Israel, mas não morreu. Ele precisou de um tipo de sangue com uma rara mutação. A equipe do doutor Moser conseguiu, em negociação com a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho, que os familiares do terrorista do outro lado da fronteira doassem sangue para salvar-lhe a vida. Desde então, sangue palestino salva judeus, e sangue judeu salva palestinos.

Inimigos, mas unidos pela música e pelo sangue, pelo menos metaforicamente, israelenses e palestinos poderiam conviver pacificamente. Os prognósticos, porém, são pessimistas. A democracia é mais forte que o sangue e a música quando se trata de obter e manter a paz. O alemão Immanuel Kant (1724-1804) prenunciou essa teoria no ensaio “Paz perpétua”, escrito em 1795. A realidade deu-lhe razão. Democracias não tentam varrer o país dos vizinhos do mapa nem mantê-los em seu território como cidadãos de segunda classe. Líderes democráticos são forçados a aceitar a responsabilidade pelos atos de guerra. Estadistas recorrem à diplomacia e à negociação antes de disparar mísseis. Não existe exemplo de guerras travadas entre dois estados verdadeiramente democráticos.

O encalacramento atual na região reside justamente no fato de a democracia ser inexistente em Gaza sob o Hamas e de estar em perigo em Israel sob Benjamin Netanyahu, com sua crescente dependência da extrema-direita e dos religiosos ortodoxos para se manter no poder. A superioridade moral de Israel sobre os vizinhos autocráticos, teocráticos e despóticos sempre foi a democracia. Se perder esse anteparo, o Domo de Ferro pode interceptar todos os mísseis do inimigo, mas Israel estará cada dia mais desprotegido.

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