- O Globo
O conflito entre israelenses e palestinos
é, há décadas, a mais complexa questão internacional. Um cessar-fogo entre os
dois lados, como o desta semana, ocorre sempre por pressões externas. Os
líderes da região vicejam na guerra. Sua força parece aumentar apenas com o
rugir dos tanques, o macabro assobio dos mísseis e com o calor da retórica belicista.
Uma economia de guerra prospera de ambos os lados, tornando a paz genuína e
duradoura uma miragem. Já se tentou de tudo para parar essa marcha da
insensatez — menos a democracia.
As tiranias são as maiores ameaças à paz. Elas esmagam todas as tentativas de coexistência pacífica. O estudioso palestino Edward Said criou, com a ajuda do maestro judeu Daniel Barenboim, a Orquestra Divan, composta por jovens músicos palestinos e israelenses unidos pela música. Demonizada pelo Hamas, grupo militar que governa a Faixa de Gaza, e condenada pelo BDS, movimento internacional que preconiza o boicote econômico, acadêmico, cultural e político de Israel, a Orquestra Divan sobrevive apenas pelas doações de voluntários em todo o mundo.
Quando falei com o Edward Said em seu
escritório na Universidade Columbia em 1999, o câncer linfático que o mataria
em 2003 já estava bem avançado, mas a sonda de oxigênio não o impediu de
defender com fervor sua tese central sobre as possibilidades de convivência
produtiva entre Israel e a Palestina sem interferências “colonialistas”.
Timothy Brennan acaba de publicar uma biografia, ainda sem tradução para o
português, desse pensador complexo e radical em seu humanismo estoico: “Places
of Mind: A Life of Edward Said”. O título, “lugares mentais”, faz referência a
Said se descrever como um “palestino metafórico”.
Outro humanista acima das divisões de raça,
ideologia e religião, o médico israelense Asher Moser manifestou seu temor de
que o avanço da insanidade nos dois lados da fronteira enterre a magnífica
experiência dos bancos de sangue comuns a árabes e israelenses.
— O sangue é a única área onde existe
fraternidade completa entre judeus e árabes neste país, com a cooperação entre
judeus e palestinos nos territórios — disse Moser.
Os bancos de sangue comuns surgiram depois
de um quase impensável evento ocorrido em 2006, quando um terrorista árabe se
explodiu em Israel, mas não morreu. Ele precisou de um tipo de sangue com uma
rara mutação. A equipe do doutor Moser conseguiu, em negociação com a Cruz
Vermelha e o Crescente Vermelho, que os familiares do terrorista do outro lado
da fronteira doassem sangue para salvar-lhe a vida. Desde então, sangue
palestino salva judeus, e sangue judeu salva palestinos.
Inimigos, mas unidos pela música e pelo
sangue, pelo menos metaforicamente, israelenses e palestinos poderiam conviver
pacificamente. Os prognósticos, porém, são pessimistas. A democracia é mais
forte que o sangue e a música quando se trata de obter e manter a paz. O alemão
Immanuel Kant (1724-1804) prenunciou essa teoria no ensaio “Paz perpétua”,
escrito em 1795. A realidade deu-lhe razão. Democracias não tentam varrer o
país dos vizinhos do mapa nem mantê-los em seu território como cidadãos de
segunda classe. Líderes democráticos são forçados a aceitar a responsabilidade
pelos atos de guerra. Estadistas recorrem à diplomacia e à negociação antes de
disparar mísseis. Não existe exemplo de guerras travadas entre dois estados
verdadeiramente democráticos.
O encalacramento atual na região reside justamente no fato de a democracia ser inexistente em Gaza sob o Hamas e de estar em perigo em Israel sob Benjamin Netanyahu, com sua crescente dependência da extrema-direita e dos religiosos ortodoxos para se manter no poder. A superioridade moral de Israel sobre os vizinhos autocráticos, teocráticos e despóticos sempre foi a democracia. Se perder esse anteparo, o Domo de Ferro pode interceptar todos os mísseis do inimigo, mas Israel estará cada dia mais desprotegido.
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