- O Estado de S. Paulo
Fala-se em ‘terceira via’ para 2022 como se
fosse mágica, mas pouco se faz por ela
O melhor seria passar um pano em tudo e
começar de novo.
Só que é impossível. Sociedades, Estados,
sistemas políticos, instituições, acumulam pó e sujeira, mas não podem ser
limpos com panos e detergentes comuns. Requerem recursos e ingredientes que não
se encontram no mercado. E que, hoje, nesse Brasil que está deixando de ser tão
brasileiro, fazem uma falta lancinante, que machuca e faz sofrer.
Falta-nos, antes de tudo, uma ideia de
sociedade futura. Como queremos viver, para além da obviedade de que queremos
todos ser felizes e bem tratados, ter um Estado eficiente e instituições que se
façam respeitar e regulamentem a vida? Queremos justiça e igualdade (entre
gêneros, etnias, orientações sexuais e classes), mas não há pistas de como isso
poderá ser alcançado. Reivindicações e desejos saltam na vida cotidiana, mas os
atores políticos não sabem como agarrá-los.
Com qual economia, para começo de conversa?
Uma pujante, consciente de suas possibilidades, disposta a incluir o País no sistema
de intercâmbios internacionais, capaz de gerar renda e empregos, de adotar a
sustentabilidade como critério estratégico, de aceitar o Estado como regulador
ativo? Ou uma perdulária, sem produtividade, voltada para si, sem tecnologia
incorporada? Uma economia atenta aos imperativos categóricos do planeta, a
começar da agenda climática e ambiental, ou caolha, dedicada à destruição da
natureza, ao desmatamento predatório, à conquista da terra como bem a ser
explorado sem cautela e sem interesse coletivo?
Não temos um projeto para revitalizar a Federação, equiparar minimamente Estados e municípios, dar a cada um deles as condições necessárias para progredir. O País está manco, caminha claudicando.
Não temos um plano para recuperar os
sistemas vitais, a educação, a saúde, a assistência – a proteção social. Tudo
nessas áreas é imperfeito, deixa a desejar, as carências estão expostas à luz
do dia, sem que saibamos como abordá-las.
Falta-nos um projeto de Estado, um padrão
de governança que tenha estabilidade e produza resultados, que valorize e
blinde as instituições contra aventureiros autoritários, ideólogos
reacionários, redes irresponsáveis, negacionistas contumazes, oportunistas,
corjas de malfeitores que só pensam nas vantagens a obter, que são ignorantes
da sociedade existente. Estamos sentindo na pele as consequências do desvario
que nos acometeu em 2018 e possibilitou a eleição de uma cúpula de estroinas
perversos.
É assustador constatar que estamos assim
apesar de possuirmos recursos técnicos, intelectuais, culturais e políticos
para reinventar o Brasil. Vivemos como se dependêssemos de um milagre
celestial, de uma explosão popular ou das conclusões de uma CPI no Senado. Por
que nossos políticos preferem se entregar ao jogo miúdo da pequena política, a
lançar granadas de baixa potência e que não atingem o alvo, optando por
privilegiar seus interesses partidários, regionais, ideológicos, em vez de
oferecer algo consistente à sociedade?
Quero crer que isso se deva a alguns
fatores.
Primeiro, nossos políticos não têm dimensão
intelectual. Não falo de formação escolar ou de diplomas, que todos os exibem a
mancheias. Falo de capacidade de compreender o mundo, a sociedade em que atuam,
os cidadãos que os elegem. Nesse ponto, falta-lhes o fundamental. Ética pública
democrática, domínio da linguagem, generosidade cívica, comunicação. Em muitos
falta também honestidade.
Segundo, os partidos vivem em crises que se
sucedem sem interrupção e os impedem de atuar como entes coletivos, que saibam
disputar o poder sem virar as costas para a sociedade e com coesão suficiente
para que sejam confiáveis para o eleitorado. Ora se estapeiam em brigas
internas fratricidas, ora se arrastam para obter os apanágios e as prebendas do
governo de plantão, ora se entregam aos mandachuvas de sempre, incapazes de
confrontá-los ou ponderar sua imprescindibilidade. Gostam de polarizações
simplificadoras, da posição confortável de repetir mantras surrados, como se
servissem para todo o sempre.
Terceiro, a base do que mais nos falta:
capacidade de articulação nacional e democrática. O provincianismo e o
tribalismo político predominam. Hoje se admite que em 2022 se vai repor a
polarização que nos atazana a vida desde 2018. Fala-se em “terceira via” como
se fosse mágica, mas pouco se faz por ela. Não se reconhece que o polo Lula é
superior em tudo ao polo Bolsonaro e que, portanto, não se deveria bater em
Lula e nos petistas, mas, sim, forçá-los ao entendimento amplo. O PT poderá
voltar ao governo, por que não? Tudo terá de ser processado para que o País
renasça. Por todos, incluídos Lula e o PT. Sem isso será mais do mesmo.
Lula e o PT, afinal, não são os únicos
jogadores e é muito fácil atribuir a eles a responsabilidade pela não
existência do que poderia reconstruir o Brasil e unificar os brasileiros. É
fácil, mas é um equívoco, que somente serve para ocultar a incompetência que
grassa entre os demais jogadores.
*Professor Titular de Teoria Política da Unesp
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