quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Cristovam Buarque* - Até o racismo acabar

Correio Braziliense

De nossos 500 anos, 350 foram sob sistema escravocrata. As consequências foram trágicas para a saúde econômica, social, política e cultural do Brasil. Somos um país formado, forjado e viciado no sistema escravocrata, dividindo a sociedade entre pessoas incluídas e excluídas, estas até hoje identificadas com a raça negra. Mesmo a decisão de abolir o sistema escravocrata não eliminou o preconceito contra nossos compatriotas negros. Quando se observa o tratamento dado aos trabalhadores pobres e o racismo que se mantém 133 anos depois da Abolição, o Brasil é um país de escravismo ainda não superado totalmente. Os séculos consolidaram o preconceito e formaram o racismo. 

A principal causa vem da desigualdade como a educação de base é oferecida no Brasil conforme a renda da família, e ao fato de que muitas das famílias de baixa renda são negras. A escola das classes média e alta é diferente da escola dos pobres e, em consequência, a escola dos brancos é diferente da escola dos negros. O sistema escolar brasileiro segrega brancos dos negros, por força da desigualdade na renda, salvo raros destes que ascenderam economicamente e não são mais recusados nas escolas da elite. Apesar das leis que tentam quebrá-lo, o preconceito cresce porque as raças não se misturam em escolas de qualidade. 

Agravando o racismo, as escolas com qualidade beneficiam os brancos no momento do ingresso no ensino superior, e por isso a elite intelectual é branca, fortalecendo o preconceito e o racismo. É como se os brancos, por terem renda, tivessem cotas reservando para eles quase todas as vagas no ensino superior de qualidade: ao pintar de branco a cara da elite, a universidade se transforma em fábrica de preconceito e de racismo. 

O caminho correto para superar o preconceito e o racismo é a implantação de um Sistema Nacional Público Único de Educação de Base que ofereça a mesma escola para ricos e pobres e, portanto, para negros e brancos, desde a primeira idade. Quando isso ocorrer, o preconceito e o racismo desaparecerão pela convivência entre brancos e negros na mesma escola básica, e também porque o ingresso na universidade passará a ser disputado nas mesmas condições, não mais conforme a renda e, em consequência, conforme a cor. Quando as escolas tiverem a mesma qualidade, a cor da cara da elite terá a variedade das cores da cara do povo brasileiro. 

A elite econômica sabe do risco que isso provocará nos seus interesses e, ainda que esteja contra o racismo, continua a favor do rentismo aplicado às escolas. Embora contrário no racismo, desejam manter o rentismo como forma de segregação escolar. Até mesmo os raros negros que ascenderam socialmente parecem desmotivados para a implantação de um Sistema Único de Educação que atenda pobres e ricos com a mesma qualidade. 

Enquanto o Brasil não tiver um sistema educacional que não discrimine crianças conforme a renda, será preciso reservar vagas nas universidades para negros, de maneira a impedir a atual reserva de quase todas elas para os brancos, como tem ocorrido ao longo da história. Para isso, precisamos redondear as escolas, dando-lhes a mesma qualidade. As cotas para negros ingressarem na universidade não vão abolir o racismo, mas vão diminuir o preconceito, na medida em que a sociedade começa a se acostumar com profissionais negros de nível superior. O preconceito diminuirá se nossos melhores médicos e cientistas forem negros, nosso primeiro Prêmio Nobel for negro, como é Pelé, graças ao fato de a bola ser redonda para todos, brancos, negros, ricos e pobres.  Cotas para negros são necessidade nacional, não benefício individual para o jovem negro que concluiu o médio e graças a isso se classificou no ENEM ou no vestibular pelo sistema de cotas. 

Enquanto a sociedade não aceita implantar um Sistema Nacional Público Único de Educação de Base, devemos agradecer ao jovem que teve o talento de chegar na universidade usando a cota. Quem se beneficia é o país ao dar um toque de preto na cara da elite e quebrar um pouco o preconceito racial, entranhado no Brasil. Se fosse para beneficiar o indivíduo negro que usa a cota, o indivíduo branco que se sente preterido teria o direito de reclamar ser preterido, mas quando um jovem branco entra na universidade, ele não reduz o preconceito racial, o jovem negro se formando ajuda a reduzir. 

Por isso, a cota para negros ingressarem no ensino superior tem que permanecer até quando o preconceito desaparecer, depois da implantação do Sistema Nacional Público Único de Educação de Base. 

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação

Um comentário:

Carreira Neles! disse...

Conforme a frase "O preconceito diminuirá se nossos melhores médicos e cientistas forem negros, nosso primeiro Prêmio Nobel for negro, como é Pelé, graças ao fato de a bola ser redonda para todos, brancos, negros, ricos e pobres.".
Será que vai diminuir? Não, só diminui quando se tem consciência do mal que se faz. O Pelé é considerado branco pela elite e pela classe média, não só no Brasil, lá nos EUA ele é o cara, mas seria pelo futebol ou pela conta bancária dele. Como disse um certo ator americano “Nós não somos racistas, se você for rico”.
Você acha que fazendo todos os negros do Brasil se tornarem médicos ou advogados iria acabar com o preconceito racial e esse país se tornaria um paraíso. Vejo que seu raciocínio é ilógico.
Vamos nos reunir algum dia e debater sobre isso, no mais, o artigo está razoável.