O Globo
Medidas para evitar são meritórias, mas a
lei representa uma intervenção excessiva no mercado de crédito
Crédito é assunto sério. Trata-se de um
importante motor da economia, sendo um dos principais canais de atuação da
política monetária do Banco Central sobre a atividade econômica. Não à toa, é
elevada a correlação entre a concessão de crédito à pessoa física e o crescimento
do PIB.
Além disso, o crédito impacta o bem-estar dos indivíduos ao permitir a antecipação de consumo e o socorro diante de contingências. Por outro lado, excessos precisam ser evitados, pois produzem ciclo econômico mais acidentado e o sofrimento de devedores. Todo cuidado é pouco nas políticas direcionadas ao mercado de crédito.
No Brasil, com frequência ocorrem exageros.
Não apenas por taxas de juros artificialmente baixas do BC, mas pela ação dos
bancos públicos e do crédito direcionado (com juros regulados, a principal
modalidade é o crédito imobiliário). Colhe-se assim inflação, alta dos juros e
inadimplência.
Ao longo do ano passado, a inadimplência da
pessoa física recuou, apesar da escalada do desemprego. A razão foi a combinação
de expressiva injeção de recursos na economia via o auxílio emergencial e a
própria expansão do crédito. Em que pesem as boas notícias, é inevitável a
leitura de que houve excesso de estímulos governamentais.
O bom momento, em parte artificial, ficou
para trás: a inadimplência ensaia elevação; cresce a utilização de linhas
emergenciais (como o cheque especial); e o aperto monetário necessário para
conter a inflação começa a cobrar seu preço — sobem os juros ao consumidor e há
sinais de acomodação na concessão de crédito.
Com o endividamento recorde, o já elevado
comprometimento da renda dos indivíduos com o pagamento da dívida deverá seguir
em alta, o que poderá alimentar a inadimplência. Acendem-se as luzes amarelas.
O que fazer diante disso? A primeira coisa
é não colocar areia nas engrenagens do crédito. Muitas vezes ações
bem-intencionadas acabam se mostrando contraproducentes. É o caso da lei do
superendividamento, em vigor desde julho.
A lei estabelece que as instituições
financeiras precisarão condicionar a concessão de crédito à preservação de uma
renda mínima para a pessoa cobrir suas despesas básicas, sem comprometer o
orçamento com pagamento do serviço da dívida.
No caso de renegociação, vale o mesmo
princípio: o acordo precisa preservar esse mínimo existencial, a ser
regulamentado.
Medidas para evitar superendividamento são
meritórias, e as análises de crédito dos bancos caminham para isso, o que
depende da disponibilidade de informações dos clientes — foi a intenção da lei
do cadastro positivo. Os clientes, por sua vez, precisam ter acesso
transparente às informações do contrato — o que é previsto nesta lei.
Ao Estado cabe eliminar problemas de falta
informação de lado a lado e coibir abusos.
No entanto, a lei representa uma
intervenção excessiva no mercado de crédito. Há um caráter até paternalista em
regular o grau de endividamento dos indivíduos, o que prejudica o amadurecimento
financeiro. Além disso, sua implementação poderá ser um pesadelo.
A dificuldade começa pela definição do
mínimo existencial. Trata-se de uma tarefa inglória, especialmente em um país
com ciclo econômico acidentado e elevada informalidade. Esse mínimo poderá
sofrer grandes oscilações ao longo do tempo, podendo abrir margem para
judicialização.
A lei poderá alimentar comportamentos
oportunistas, com indivíduos deixando zelar pela boa gestão de seu
endividamento, pois veem maior espaço para uma renegociação adiante,
questionando na Justiça a definição do mínimo existencial.
Essa seria uma fonte de insegurança
jurídica ou até estímulo à inadimplência, fatores já responsáveis por parcela
importante do custo do crédito. Somam-se a isso os custos adicionais associados
à análise de crédito.
O resultado, ao final, será a menor oferta
de crédito e com juros mais elevados. Os grupos de menor renda serão os mais
afetados, frustrando a expectativa de ampliação do mercado de crédito,
inclusive pelas fintechs. A lei produz ineficiências e está desalinhada com a
agenda do BC e do governo de redução do custo do crédito.
Caberia ao governo gerir bem a economia
para evitar ciclos econômicos acidentados, continuar avançando com medidas para
reduzir a assimetria de informações no mercado e para reduzir o custo do
crédito. Não foi esse o caso, pelo contrário.
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