Valor Econômico
Não é só incompetência e ignorância, é um
sistema cuja ideia é criar um modelo político similar à Rússia de Putin e à
Hungria de Orbán
A evolução do governo Bolsonaro é a criação
de uma série de riscos ao futuro do país. Para quem conhecia minimamente a
história do deputado que defendeu o fuzilamento do ex-presidente Fernando
Henrique e que disse que a ditadura deveria ter matado pelo menos mais 30 mil
pessoas, o risco democrático já estava na mesa desde a posse. De lá para cá, o
cenário tornou-se mais perigoso, seja porque a ameaça à democracia é renovada
quase toda semana, seja em razão de outros riscos terem sido incluídos nessa
lista.
O mais danoso deles deriva da última viagem desastrosa à Rússia: o presidente colocou o Brasil sob risco geopolítico em suas relações com o Ocidente. Esse posicionamento pode custar anos de isolamento político e piora no cenário econômico.
Neste momento, vale lembrar uma frase dita
por Bolsonaro em sua primeira viagem internacional, em março de 2019, não por
acaso uma visita a seu guru, Donald Trump. A frase é o resumo lapidar do
projeto do bolsonarismo: “O Brasil não é um terreno aberto onde pretendemos
construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.
Desfazer muita coisa”.
Sob esse lema, tentou-se mudar tudo o que
foi possível naquilo que fora construído em governos de partidos diferentes
como base de um projeto de país a partir da redemocratização. Entraram aqui o
funcionamento da democracia, das políticas públicas, mais recentemente da
estabilização econômica, e agora consolida-se uma mudança na política externa,
que aprofunda o isolacionismo e vai além: nos coloca, de forma inédita, contra
os principais aliados históricos.
É preciso entender as partes e sua junção
sistêmica que desagua no risco Bolsonaro. O primeiro elemento é o do risco
político-democrático. A ameaça à democracia tem duas serventias ao
bolsonarismo. De um lado, o autoritarismo é um valor profundo dos
bolsonaristas, influenciados por um movimento internacional de populismo
autoritário e por sentimentos enraizados na sociedade brasileira contrários à
igualdade entre as pessoas. De outro, jogar contra as instituições é também uma
estratégia política para manter todo o sistema político acuado, dificultando
sua reação contra os erros governamentais e os escândalos da família Bolsonaro.
As duas partes do risco democrático
bolsonarista afetam o futuro do país. Aquela referente aos valores pode
significar que ao menos uma parcela de 15% a 20% do eleitorado brasileiro
abraçaria essa visão de mundo, de modo que, quaisquer que sejam as mudanças de
governantes no futuro, eles terão de lidar com um grupo barulhento e disposto a
dificultar o funcionamento das instituições democráticas brasileiras.
Já o uso estratégico da ameaça à democracia
pode ser uma arma contra qualquer resultado contrário à reeleição do presidente
Bolsonaro. Daí virão os métodos de fake news, amedrontamento da população mais
conservadora, atiçamento das Forças Armadas e outras maneiras de tornar o
pleito presidencial uma batalha final.
O risco democrático bolsonarista, em
resumo, vai gerar uma disputa presidencial muito tumultuada, com incertezas
sobre o cumprimento dos resultados das urnas. E mesmo se reeleito, é bom
frisar: Bolsonaro continuará atuando tanto sobre o terreno dos valores como na
estratégia de ameaça à democracia. Por essa razão que a dupla viagem à Rússia e
à Hungria serviu mais ao presidente do que ao país, como disse o cientista
político Guilherme Casarões.
A visita feita aos presidentes da Rússia,
Vladimir Putin, e da Hungria, Viktor Orbán, foi para entender como eles
conseguiram ficar tanto tempo no poder, tornando-se autocratas populistas, sem
precisar dar um clássico golpe de Estado. Esse é o horizonte político desenhado
pelo bolsonarismo ao buscar a reeleição.
O segundo risco criado por Bolsonaro é o da
destruição do federalismo da Constituição de 1988, buscando tornar os governos
subnacionais subservientes à União, mas ao mesmo tempo reduzindo o papel do
governo federal no combate às desigualdades territoriais, colocando a culpa nos
governantes locais de todos os problemas do país. Essa equação é paradoxal,
porque ela, ao mesmo tempo, torna Brasília um poder inconteste e irresponsável.
O objetivo final do bolsonarismo é reduzir
qualquer controle político vindo da Federação e transformar estados e
municípios em meras correias de transmissão das decisões tomadas no Palácio do
Planalto.
Na mesma linha destrutiva, instalou-se um
risco à organização autônoma e republicana da administração pública brasileira.
Esse terceiro aspecto passa pelo enfraquecimento e/ou colonização da maioria
dos órgãos do governo federal, como a Funai, o Ibama, a Embrapa, a Polícia
Federal, os equipamentos da cultura, para citar uma pequena (mas relevante)
parte desse desmonte patrimonialista e autoritário.
A guerra com a Anvisa foi um exemplo
clássico do risco bolsonarista aqui: o Ministério da Saúde enfraqueceu as
decisões científicas o quanto pôde, algo que, no mínimo por leniência,
acarretou milhares de mortes por covid-19 no país. No fundo, Bolsonaro não
suporta ter servidores públicos autônomos, pois ele quer ter subordinados do governo.
Ressalte-se que nenhum país conseguiu se desenvolver democraticamente sem um
corpo de funcionários públicos profissionais, especialistas e com capacidade de
resistir a ordens ilegítimas e desastrosas.
O enfraquecimento das políticas sociais é o
quarto risco colocado ao país desde que Bolsonaro chegou ao poder. A educação
foi completamente escanteada pelo próprio MEC, mesmo quando a pandemia exigia
que o governo federal ajudasse estados e municípios a enfrentar esse enorme
desafio. O retrocesso educacional em quatro anos de poder será muito profundo,
de maneira que será necessário mais do que um mandato presidencial para
corrigir todos os erros cometidos.
A política sanitária também foi muito
afetada pelo descalabro bolsonarista, embora o SUS tenha tido resiliência
suficiente para evitar o pior - se não fosse esse sistema e seus abnegados
profissionais, além dos governos subnacionais, teríamos hoje mais de 1 milhão
de mortes por covid-19.
O resultado do risco social atrelado ao
bolsonarismo foi o aumento da desigualdade em proporções que não víamos há
décadas. Os números dizem isso, as ruas das grandes cidades gritam isso.
Distribuir o Auxílio Brasil é necessário neste cenário, mas para mudar tal
panorama é preciso ter as políticas que Bolsonaro abandonou - educação, saúde,
cultura, habitação, assistência social, direitos humanos e políticas urbanas.
A política ambiental desastrosa é uma marca
do governo Bolsonaro. Esse problema traz um quinto risco profundo para o país,
uma vez que não só afeta questões internas, contribuindo para aumentar a
instabilidade climática que tem graves efeitos econômicos e sociais, como
também gera um impacto negativo no plano internacional.
É necessário dizer em alto e bom som: o
Brasil deixará de receber investimentos externos (na verdade, já está deixando
de receber) e sofrerá sanções econômicas caso não altere a forma como o
Ministério do Meio Ambiente bolsonarista tem atuado. Essas sanções podem ser
sobre produtos, mas também se expressar como veto a qualquer acordo ou entrada
em organismo externo que possa nos beneficiar. Dito de outro modo: enquanto o
bolsonarismo estiver no poder, a questão ambiental irá impedir a entrada na
OCDE e qualquer acordo com a União Europeia.
No final do governo, surgiu uma novidade em
relação ao discurso original do bolsonarismo, que aparentemente delegaria a
economia ao liberalismo de Paulo Guedes. O populismo autoritário de Bolsonaro
sempre limitou esse poder, mas desde o final do ano passado acabou de vez com
qualquer ilusão quanto à força do Posto Ipiranga. A PEC dos Precatórios, as
emendas secretas, os novos abatimentos de dívidas e renúncias tributárias, além
de todos os prováveis atos populistas que devem vir nos próximos meses,
comprovam um grande risco à estabilidade econômica de longo prazo do país.
Todos os riscos anteriores, sozinhos ou
somados, são muito graves. Porém, algo muito pior foi criado com o
posicionamento de Bolsonaro na viagem à Rússia: o Brasil já não é mais
considerado pelos Estados Unidos e pela Europa como um parceiro preferencial, e
poderá, no limite, ser isolado e sofrer sanções por essa postura. Como esse
conflito deve redesenhar a disputa entre as grandes potências do planeta, a
situação atual só tem paralelo na década de 1930, quando Vargas teve que
escolher um dos lados da Guerra Mundial. Imagine qual seria nosso destino se o
varguismo tivesse optado pelos alemães. Agora imagine qual pode ser nosso
futuro se o Brasil não for considerado um aliado do Ocidente nos próximos
anos...
O risco geopolítico criado por Bolsonaro
não é só incompetência e ignorância política. Ele é a parte final de um sistema
cuja ideia reguladora é criar um modelo político similar à Rússia de Putin e à
Hungria de Orbán no Brasil. Esse é o risco maior que os eleitores devem levar
em conta, até porque isso não será apenas um retrocesso democrático, mas também
nos colocará no lado que perderá os bônus econômicos da parceria ocidental, sem
que tenhamos qualquer aliança com o bloco que será comandado pela China, pois o
bolsonarismo não suportaria uma aliança estratégica com os “comunistas” que
tanto xingam nas redes sociais.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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