O Globo
Terceiro ano de pandemia, 428 milhões de casos confirmados e 5,9 milhões de mortos pela Covid-19 planeta afora, nem 40% da população global vacinada até a virada de 2022, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Territórios e vidas varridos por desastres naturais severos em todos os continentes. Floresta Amazônica apequenando-se entre chamas e pilhagem. E começa uma guerra. Não venho apontar fatos históricos, erros, justificativas para a escalada do conflito que deu no ataque da Rússia de Vladimir Putin à vizinha Ucrânia. Só lembrar que nada de bom surge da guerra. Na incapacidade de a diplomacia e as lideranças globais garantirem a paz, perdemos todos, brasileiros incluídos.
O conflito no Leste Europeu elevou a
instabilidade mundial num momento em que países ensaiavam a volta à normalidade
após a peste, mais devastadora pandemia desde a gripe espanhola, pós-Primeira
Guerra. Haverá mortes — a contagem já começou — e movimentos migratórios de
refugiados. Estima-se que de 200 mil a 1 milhão de ucranianos possam fugir para
países da União Europeia, dependendo da duração e da intensidade dos
confrontos. Em nota, a Anistia Internacional apelou pela “proteção da vida de
civis e pela garantia de acesso ilimitado à ajuda humanitária” na região do
conflito.
Ações despencaram nas Bolsas de Valores,
commodities (agrícolas e minerais) dispararam de preço. O rol de sanções e a
garantia de Joe Biden de que os EUA não combaterão a Rússia dentro da Ucrânia
acalmaram em parte os mercados, numa quinta-feira que começou com pânico. O
petróleo bateu os US$ 100 por barril pela primeira vez em sete anos — é sinônimo
de combustíveis e energia mais caros para famílias e empresas.
O Brasil adentrou a crise da pior maneira
possível. Jair Bolsonaro foi à Rússia, quando a tensão se intensificava, e
expressou solidariedade a Putin. Levou pito público de Jen Psaki, porta-voz do
presidente do EUA, país que é o segundo maior parceiro comercial do Brasil,
atrás da China. Iniciada a invasão, o presidente não se manifestou. O Itamaraty
—de tradição neutra, pacífica e respeitosa a princípios de autodeterminação e
soberania dos povos, mesmo durante a ditadura militar — se equilibra em notas
que, por pressão do mandatário brasileiro, não dizem o esperado.
Parte do comunicado de ontem foi
considerada indefensável por quadros experientes da diplomacia nacional. É a
parte que sugere equivalência entre país invasor e nação invadida: “O Brasil
apela à suspensão imediata das hostilidades e ao início de negociações
conducentes a uma solução diplomática para a questão, com base nos Acordos de
Minsk e que leve em conta os legítimos interesses de segurança de todas as
partes envolvidas e a proteção da população civil”.
No empresariado brasileiro, há quem
vislumbre rentabilidade com a valorização das mercadorias que o país oferece ao
mundo. Minério de ferro, grãos, açúcar, todos subiram de preço, ainda que,
objetivamente, negócios não tenham sido fechados em razão da altíssima
incerteza. Soja e milho mais caros pressionam preços da comida, incluindo
carnes e aves; açúcar vem da mesma cana do etanol; trigo encarece pão e massas;
minério, o aço, os insumos da construção, os automóveis. Guerra e sanções
comerciais podem desestabilizar circulação de mercadorias e cadeias produtivas.
A onda de instabilidade pode retirar
investimentos do Brasil e reverter a tendência de queda do dólar — ainda ontem,
a moeda americana, que flertara com R$ 4,99 no início da semana, voltou a R$
5,10. Commodities e dólar mais caros são pressões evidentes na inflação dos
alimentos e dos transportes, dois grupos que mais pesam no orçamento das
famílias brasileiras, principalmente as mais pobres. Inflação maior, juros
maiores, menos crescimento e emprego num país que entrou em 2022 com 12 milhões
de desocupados.
Economista no Ipea, Maria Andreia Lameiras
chamou a atenção, na última Carta de Conjuntura, para o risco de conflito entre
Rússia e Ucrânia agravar um cenário já afetado pela inconsistência fiscal e
pela aproximação das eleições. O órgão trabalha com IPCA de 5,6% neste ano, já
acima do teto da meta (5%), mas pode rever a estimativa se a crise se
prolongar. “Os efeitos na economia e na inflação serão determinados pela
duração do conflito e impacto em preços, logística, contratos. Estamos vendo o
agravamento de um ambiente que já estava ruim. A demanda por petróleo estava
muito aquecida, um choque de oferta agora vai pressionar demais a inflação em
todos os países”, resume.
Mesmo que o agronegócio venda mais caro a
produção, mesmo que a Petrobras duplique o lucro líquido de R$ 106 bilhões de
2021 com novo choque do petróleo, não há o que celebrar. O povo brasileiro,
acossado pelo desemprego, pela carestia e pela miséria, sofrerá. E será o fim,
se Bolsonaro transformar em commodity a neutralidade diplomática brasileira,
trocando-a pela artilharia digital antidemocrática russa nas eleições de
outubro.
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