Correio Braziliense
Até agora, os Estados Unidos
não recorreram à ação militar direta. A razão é óbvia: A Rússia herdou a
paridade estratégico-militar da antiga União Soviética, em razão do seu poderio
nuclear
Estava escrito nas estrelas o que acontece
na Ucrânia, invadida por tropas do Exército russo por ordem do presidente
Vladimir Putin. A dura retaliação econômica dos Estados Unidos e seus aliados
da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) aos dirigentes, magnatas e
instituições financeiras russas também. Joe Biden, o presidente dos Estados
Unidos, desde o primeiro momento da crise, ao lado do primeiro-ministro
britânico, Boris Johnson, havia advertido que o Ocidente não toleraria uma
agressão à Ucrânia. Os dois pagaram para ver e, agora, estamos diante de um
novo conflito envolvendo as fronteiras da Europa, descongeladas pela queda do
Muro de Berlim e o fim da antiga União Soviética, no final do século passado.
É bom lembrar que os Estados Unidos atuam como uma espécie de xerife do mundo, nem sempre sob a bandeira da Organização das Nações Unidas (ONU), desde a dissolução da antiga Iugoslávia, em 1991. Ironicamente, com apoio da Rússia, os EUA contiveram os planos expansionistas da Sérvia, duramente bombardeada por três meses. A política de limpeza étnica do então presidente sérvio, Slobodan Milosevic, foi punida exemplarmente. Depois de perder as eleições em 2000, o líder nacionalista acabou preso por crimes de guerra no cerco à Sarajevo e pelo massacre de Srebrenica, ocorrido em julho de 1995, quando tropas sérvias executaram cerca de oito mil bósnios. Os Estados Unidos também exerceram o papel de xerife no Iraque, na Líbia, na Síria e no Afeganistão, entre outros países.
Na Ucrânia, porém, os Estados Unidos não
recorreram à ação militar direta. A razão é óbvia: a Rússia herdou a paridade
estratégico-militar da antiga União Soviética, em razão de seu poderio nuclear.
Esse era o ponto de equilíbrio da antiga “guerra fria”. A derrota dos regimes
comunistas do Leste Europeu ocorreu devido à estagnação econômica e à grande
insatisfação popular com a falta de liberdade. Essa é a mesma aposta de Biden
para derrotar Putin. Ou seja, os EUA pretendem isolar politicamente o líder
russo e provocar o colapso de seu governo, com sanções duríssimas por parte de todos
os países da Otan.
A situação é muito diferente de 20 anos
atrás para os Estados Unidos exercerem seu papel. Nesse período, a Rússia
conseguiu se reestruturar, e a China emergiu como a segunda potência econômica
do planeta, disputando a hegemonia do comércio mundial, cujo eixo se deslocou
do Atlântico para Pacífico. A aliança entre os Estados Unidos e a China,
inaugurada no governo Nixon, que fora fundamental para a derrota do regime
soviético, resultou num novo cenário internacional: o mundo deixou de ser
unipolar.
Diante do declínio de sua hegemonia
absoluta, no governo de Donald Trump, os Estados Unidos iniciaram uma guerra
comercial com a China, mas mantiveram boas relações com a Rússia, apesar do
conflito da Ucrânia. Putin era acusado pelos democratas de ter interferido nas
eleições norte-americanas em favor de Trump. Após a eleição de Joe Biden, não à
toa, a política externa dos Estados Unidos tornou-se mais dura militarmente,
tanto no Índico como na Europa Central.
Mundo bipolar
O acordo militar com a Austrália, a Índia e
o Japão, recentemente assinado, tensionou as relações com a China, que nunca
desistiu de recuperar sua soberania sobre Taiwan. A invasão da Ucrânia, para
impedir sua entrada na Otan, aproximou a Rússia ainda mais da China. É nesse
cenário que a nova “guerra fria” virou uma guerra quente, ainda localizada na
Ucrânia, mas que ninguém sabe como vai acabar.
Há outros atores em cena. No século
passado, a disputa pelo controle do comércio do Atlântico pela Inglaterra, uma
potência marítima, e a Alemanha, uma potência continental, resultou em duas
guerras mundiais. Com a União Europeia, sem gastar muito dinheiro com a Defesa,
graças à expansão da Otan, a Alemanha tornou-se a principal potência econômica
da Europa, aliando-se à França, para ocupar os mercados das repúblicas do Leste
Europeu. Os ingleses, com o Brexit, porém, decidiram sair da União Europeia e
apostar no seu protagonismo junto à Otan para manter sua hegemonia no Atlântico
Norte.
Como subproduto da crise da Ucrânia, o
principal projeto da Alemanha para eliminar sua dependência à energia nuclear
subiu no telhado: o grande gasoduto construído pela Rússia, que estava em vias
de entrar em operação e, agora, virou um mico econômico gigante. A Alemanha e a
França vinham sendo protagonistas da construção de um mundo multipolar estável.
Agora, esse objetivo ficou mais distante, ao ser completamente ofuscado pelos
Estados Unidos e pela Inglaterra, de um lado, e por Rússia e China, de outro.
Quem ganha com essa agressiva bipolaridade? O que interessa aos demais países é
a paz e um mundo multipolar.
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