terça-feira, 24 de maio de 2022

Daniela Chiaretti: Biodiversidade: o tema que pode implodir tudo

Valor Econômico

Os impasses na negociação internacional sobre biodiversidade parecem longe de serem dissolvidos

Há cheiro de Copenhague no ar. Com o perdão aos dinamarqueses, a expressão é usada em negociações ambientais internacionais quando o caldo está com jeito de querer entornar. A referência é o fiasco da COP15, a conferência climática das Nações Unidas que ocorreu em Copenhague, em 2009, e onde se tinha a expectativa de o mundo conseguir fechar um acordo de proteção ao clima. Deu tudo errado e a história daquele inverno é conhecida - por sorte e com muito trabalho, o Acordo de Paris surgiu na França, seis anos depois. Pois as rodadas internacionais que preparam a conferência de Kunming, na China, só exibiram até agora desacordo entre as delegações das mais de 190 nações que tentam se acertar em torno a uma agenda global de proteção à biodiversidade. Não está dando certo.

A pandemia não ajudou, claro. A última reunião de negociação presencial sobre este tema foi em fevereiro de 2020, em Roma. Depois se tentou avançar com reuniões virtuais, mas só quem conseguia ouvir algo eram os delegados de países ricos com computadores e internet decentes - os dos países pobres e megadiversos participavam em modo randômico. As negociações retomaram fisicamente em Genebra, em março. Avançaram milimetricamente.

Nos 45 textos das minutas de decisão para Kunming, 23 estão entulhadas de colchetes. O sinal, na linguagem das Nações Unidas, significa “sem consenso”. Existem parágrafos com colchetes dentro de colchetes dentro de colchetes, um desentendimento gráfico que coloca em risco o futuro da humanidade e de 1 milhão de espécies de animais e vegetais ameaçados de extinção.

“A maioria das pessoas não faz a menor ideia do porquê é importante preservar a biodiversidade”, diz Braulio Dias, professor de ecologia da Universidade de Brasília e que foi secretário-executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica, a CDB, de 2012 a 2017. “Pensam que a agenda da biodiversidade se resume a proteger alguns bichos bonitinhos, coloridos e peludos.” É também isso, mas muito mais. “Dependemos enormemente da biodiversidade”, segue.

O biólogo é didático: “Precisamos de oxigênio para respirar, que vem das plantas e das algas. Se continuarmos a destruir as florestas e poluir os mares, haverá redução na oferta de oxigênio. Também precisamos tomar água ao longo do dia e ela tem que ser limpa e em quantidade. A água da chuva passa por vegetação e solos que a filtram e a colocam no lençol freático. É dali que a coletamos para abastecimento, irrigação da agricultura, hidrelétricas. Também precisamos comer, e comida não vem do supermercado. Vem do campo. Estudos sobre mudança do clima e produção de alimentos mostram impactos imensos. Muitas culturas não conseguirão se adaptar. Para se adaptar é preciso ter recursos genéticos.”

Se no parágrafo anterior se entende por que preservar a biodiversidade é crucial, há motivos mais complexos. O Marco Global da Biodiversidade, a nova agenda mundial para o pós-2020, é a principal decisão esperada da COP15 - ainda sem data para ocorrer. Como há muitos temas e poucos avanços, nova reunião foi marcada para este mês, em Nairóbi. A decisão sobre o uso de sequências digitais dos recursos naturais pode colocar tudo a perder. “Há aqui um conflito político enorme”, diz Braulio Dias.

O debate de biodiversidade segue os três pilares expressos na convenção: trata-se de promover a conservação da diversidade biológica, seu uso sustentável e a distribuição justa dos benefícios que vierem de sua utilização econômica. Este último pilar resultou em um mecanismo conhecido por ABS, que garantiria o acesso à biodiversidade e a repartição de benefícios. Para entender: quem conhece biodiversidade são as comunidades tradicionais e os povos indígenas. Eles podem apontar, por exemplo, qual planta usam para aliviar a dor. Um pesquisador analisa o material e um laboratório desenvolve um anestésico a partir dali. Parte dos lucros obtidos com a venda do remédio é repartida com o país dono da biodiversidade. Isso tudo no mundo ideal e no texto acordado em reuniões anteriores.

A tecnologia avançou e o tema se complicou. O enrosco atende pela sigla DSI, sigla de Digital Sequence Information. O genoma de milhares de plantas e animais foi mapeado. Já não é preciso acessar recursos naturais físicos para desenvolver um remédio ou um cosmético, basta acessar bancos de dados no mundo com bilhões de informações digitais disponíveis. Isso tem potencial de implodir o princípio da CDB que diz que países com biodiversidade devem receber por tal riqueza.

É uma polêmica tremenda. O Japão entende que se trata de uma discussão de dados, e não de biodiversidade. Países ricos e com laboratórios não querem repartir benefícios dizendo que é impossível rastrear a origem do recurso genético. O grupo de países africanos já disse que ou se dissolve este nó e se paga aos donos da biodiversidade ou não tem acordo algum. Parece ficção científica. É tema fundamental para a ciência, economia, saúde.

Há três grandes bancos de dados de sequenciamento genético no mundo - nos Estados Unidos, no Japão e na Europa. Existem ali mais de 228 milhões de sequências. Os dados destes bancos são baixados 34 milhões de vezes ao ano. Estudos mostram que 111 países usam sequências genéticas do Brasil, enquanto pesquisadores brasileiros usam dados de 153 países. “O Brasil é muito mais usuário de material do que provedor em relação a sequências genéticas”, diz a microbiologista Manuela da Silva, gerente geral do Biobanco Covid 19 da Fiocruz e que acompanha o tema há anos. “Defendemos que os bancos de dados continuem abertos e a criação de um fundo global com repartição multilateral de benefícios”, diz ela. O tema só não está mais travado porque os países concordaram em seguir negociando. DSI é tão novo e complexo que não existe definição global sobre o termo.

Outro impasse das negociações é o de sempre: países desenvolvidos querem a maior ambição possível em conservação, mas minimizam discussões sobre repartição de benefícios e como financiar a preservação. O mundo gasta ao ano US$ 1,8 trilhão em subsídios danosos ao ambiente. Enquanto não se chega a acordo, o planeta segue perdendo bichos e plantas.

 

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