terça-feira, 24 de maio de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Ação entre amigos

O Estado de S. Paulo

Compra superfaturada de caminhões de lixo é o mais novo capítulo dessa singular parceria entre Bolsonaro e o Centrão. O que pensa o procurador-geral da República?

A conjunção de um presidente incapaz, uma grei de parlamentares oportunistas e um procurador-geral da República que não demonstra ter gana para cumprir o papel que a Constituição lhe reserva criou esse ambiente singular no qual vultosos recursos do Orçamento são usurpados à luz do dia para financiar ambições estranhas ao interesse público praticamente sem reação. Poucas vezes em nossa história republicana foi tão fácil para uma plêiade de políticos indignos de seus mandatos malversar recursos públicos. Vedações legais, imperativos morais ou espírito público parecem meros detalhes incapazes de fazê-los perder algumas horas de sono que sejam.

O jornalismo profissional e independente tem feito a parte que lhe cabe para a construção de uma sociedade democrática, vale dizer, uma sociedade informada, livre e participativa. Nos últimos três anos e meio, só o Estadão revelou mais escândalos de corrupção do que o governo que se jacta de ter “acabado com a corrupção” em Brasília teria coragem de admitir. A rigor, antes mesmo de Jair Bolsonaro tomar posse como presidente da República este jornal já havia revelado ao País o esquema das “rachadinhas”, lançando luz sobre as suspeitas de peculato, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito que recaem sobre o filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, e o “faz-tudo” do clã, o notório Fabrício Queiroz.

Desde então, o País tomou conhecimento, entre outros malfeitos, do “orçamento secreto”, esquema urdido no Palácio do Planalto para evitar o impeachment de Bolsonaro, e assistiu ao governo tomar uma nova forma: a submissão quase absoluta do presidente da República aos interesses do Centrão, grupo político que hoje é liderado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e por seu correligionário à frente da Casa Civil, o ministro Ciro Nogueira (PP-PI).

Essa parceria – chamemos assim – entre o governo e o Centrão tem se notabilizado menos pelas boas políticas públicas que poderiam advir de uma união de forças entre um Executivo e um Legislativo mais ciosos da realidade do País do que pelas suspeitas de corrupção que se sucedem a cada apuração de jornalistas que ousam não se dar por vencidos, a despeito dos fortes ataques de que têm sido vítimas.

Recursos do “orçamento secreto”, uma excrescência por si só, foram usados para comprar ônibus escolares superfaturados. Os veículos foram distribuídos de forma absolutamente antirrepublicana, privilegiando municípios governados por amigos – e até mesmo parentes – dos mandachuvas de turno. Depois, vieram os tratores, que, assim como os ônibus, foram adquiridos a preços muito discrepantes da realidade de mercado e por meio de convênios entre municípios escolhidos a dedo e a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A Codevasf, aliás, é um capítulo muito peculiar na história da “parceria” entre Bolsonaro e o Centrão. Sob o atual governo, a chamada “estatal do Centrão” foi inchada a tal ponto que passou a abarcar projetos em cidades que distam até 1,5 mil quilômetros das águas dos rios que batizam a empresa.

No domingo passado, o Estadão revelou mais um esquema envolvendo veículos pesados: a compra superfaturada de caminhões de lixo. Após análise de mais de 1,2 mil documentos durante dois meses, o jornal constatou um aumento de 500% nas compras de caminhões de lixo pelo governo Bolsonaro. Novamente, Ciro Nogueira aparece no centro das apurações. Só a empresa de uma amiga do ministro-chefe da Casa Civil firmou contrato de quase R$ 12 milhões com a Codevasf para fornecimento de 40 caminhões de lixo. As compras são dissociadas de quaisquer políticas de saneamento básico. A título de exemplo, no Piauí, Estado de Ciro Nogueira, 89% dos municípios descartam os dejetos em “lixões” a céu aberto. Segundo especialistas, até os modelos dos caminhões, do tipo compactador, são inapropriados para municípios com menos de 17 mil habitantes, como são a maioria das cidades atendidas por essas compras.

Diante das informações que a imprensa apura e publica diariamente e das evidentes suspeitas de corrupção, cabe perguntar: o que pensa o procurador-geral da República? 

Um quadro sombrio para a educação

O Estado de S. Paulo

Escolas fechadas por tempo excessivo foi só um dos graves erros cometidos pelas autoridades na pandemia; estudo do FMI mostra que sequelas no Brasil são ainda piores

Em relatório intitulado Minimizando as Cicatrizes da Pandemia, o Fundo Monetário Internacional (FMI) diagnosticou a dimensão e a complexidade das sequelas socioeconômicas a serem enfrentadas, como perdas na produção econômica, desemprego, dívida das empresas, vulnerabilidades das indústrias ou déficits de aprendizagem.

No caso do Brasil, a educação é possivelmente o setor no qual a sequela é mais grave. Duplamente grave. Primeiro pelo impacto em si da ruptura, devido ao fechamento desproporcional das escolas. Depois, porque de todas as sequelas ela é a mais negligenciada.

O Brasil esteve entre os países onde as escolas permaneceram fechadas por mais tempo. Em 2020, por exemplo, enquanto a média entre os países da OCDE foi de 44 dias letivos, no Brasil foram 178.

O fechamento impactou o acesso à nutrição e serviços de saúde como programas de vacinação para muitas crianças pobres, além dos abalos à saúde emocional com o declínio das interações sociais.

Os retrocessos na acumulação de capital humano tendem a ser brutais, pesando sobre a produtividade e a desigualdade por décadas. Além da redução do capital humano em si, as perdas de capital físico se traduzirão em menos investimentos. O declínio nos níveis de habilidades tende a aumentar o trabalho informal e ampliar as desigualdades.

O FMI calcula que os ganhos médios dos estudantes brasileiros impactados pelo fechamento das escolas serão 9,1% menores ao longo da vida. É o terceiro pior resultado entre os países do G-20. Escusado dizer que essa é uma média. As perdas serão muito maiores para as classes baixas. Em perda de aprendizado, o País está na penúltima colocação.

Um levantamento da Unesco, do Unicef e do Banco Mundial sumariou as diretrizes para Um Caminho de Recuperação. Manter as escolas abertas é prioridade. Isso seria óbvio, não fosse o histórico do Brasil e os recorrentes flertes com mais fechamentos. Ante eventuais novos surtos, é inaceitável que protocolos como redução do tamanho das classes e sistemas de turnos não sejam aplicados.

O primeiro passo para a recuperação é desenvolver sistemas de avaliação dos níveis de aprendizado dos estudantes que reflitam seus contextos e subgrupos. Essas avaliações serão cruciais para subsidiar os programas de recuperação. Esses programas devem ser modulados com uma mescla de técnicas comprovadas, como consolidação do currículo, extensão do tempo de aula ou aumento da eficiência do ensino por meio de uma instrução focada, pedagogias estruturadas, grupos seletos de tutoria e programas de ensino autoguiados.

Além das perdas de aprendizagem, é essencial mitigar as perdas socioemocionais com programas de apoio psicossocial às escolas.

Há várias boas práticas no mundo a serem emuladas. O Reino Unido, por exemplo, aprovou um fundo para apoiar a recuperação acadêmica e a saúde mental dos estudantes. A fim de aumentar a resiliência do sistema educacional contra futuras rupturas, a Coreia do Sul dedicou uma parcela significativa de seu pacote de estímulos a desenvolver infraestrutura digital e aprimorar as habilidades dos professores no ensino remoto. China, Coreia e Arábia Saudita projetaram programas de assistência financeira a famílias de baixa renda para acessar dispositivos digitais e ampliar a conectividade.

Como disse a Unesco, “agora é o momento de mudar da crise para a recuperação – e, além da recuperação, para sistemas de educação resilientes e transformativos que realmente entreguem aprendizagem e bem-estar para todas as crianças e jovens”.

Durante a pandemia, a regra no Brasil, em que pesem as exceções que a confirmam, foi a negligência, notavelmente por parte do governo federal. Não há como voltar atrás e restaurar o tempo perdido com as escolas fechadas. No início, os excessos podiam ser, se não justificados, ao menos escusados pelo medo. À medida que se conhecia melhor a real ameaça do vírus, insistir no fechamento já foi uma estupidez que, agora, redobrou o desafio educacional imposto pela pandemia. Negligenciá-lo uma terceira vez será perversidade. 

A crise real que Guedes ignora

O Estado de S. Paulo

A inflação, que não preocupa o ministro, ameaça a sobrevivência de pequenas empresas, incapazes de pagar dívidas

O mundo de maravilhas em que se transformou o Brasil na visão imaginosa (e eleitoreira) do ministro da Economia, Paulo Guedes, está muito distante do mundo real em vivem milhões de brasileiros cuja renda, quando a têm, está sendo corroída, e outros milhões de empreendedores que enfrentam dificuldades cada vez maiores para pagar suas dívidas. Tudo por causa do “inferno” da inflação, do qual, garante Guedes, o País já saiu. Os dados o desmentem e analistas privados preveem que a inflação continuará alta. E a atividade econômica se manterá muito fraca.

Enquanto o fantasma do desemprego continua a assombrar os trabalhadores, sistemática e silenciosamente a inflação vai corroendo a capacidade financeira de todos, empregados e empregadores, trabalhadores por conta própria, pessoas sem ocupação, mas que têm alguma poupança para sobreviver por meios próprios e empresas de menor porte.

Essas empresas são responsáveis por boa parte dos empregos no País, além de, no caso de microempreendimentos, terem se transformado em fonte de renda para muitos trabalhadores que, em razão da baixa atividade econômica, perderam a ocupação anterior. A crise financeira por que elas passam por causa da inflação, em alta desde o ano passado, e adicionalmente por causa do aumento dos juros ameaça a continuidade de suas operações e afeta a estabilidade de muitos fornecedores.

Caso o problema não seja resolvido de alguma forma, o impacto sobre o mercado de trabalho e sobre a produção poderá ser forte. Especialistas em crédito sugerem que só uma grande operação de renegociação das dívidas aliviará a situação dessas empresas. Em média, cada uma delas tem dívidas com sete fornecedores. O quadro é preocupante.

Dificuldades financeiras das micro e pequenas empresas vêm se acentuado pelo menos desde agosto do ano passado, de acordo com os indicadores da Serasa Experian. Os últimos dados disponíveis referem-se a março, quando o total de pequenas e microempresas inadimplentes alcançou 6,1 milhões.

Uma plataforma especializada em concessão de crédito para pequenas e microempresas, com ativos estimados em R$ 250 milhões, estima em cerca de 20% o estoque de crédito que precisa ser refinanciado. Da dívida total, cerca de 80% são com fornecedores, não com bancos.

Aumento do prazo para a quitação, que resulta na queda do valor da prestação, pode ser um dos caminhos para preservar algum caixa. No caso da plataforma citada acima, o valor médio das prestações pode cair de R$ 5 mil para R$ 4 mil.

A inflação, que deixou de ser problema para Guedes, afeta duramente as finanças das empresas de menor porte porque faz subir os preços dos insumos. A baixa atividade econômica inibe a correção dos preços cobrados pelas empresas devedoras, cuja margem, por isso, está sendo corroída. Assim, reduz-se sua capacidade de pagar as prestações da dívida.

Praticamente ninguém que conhece o mundo real vê alívio da inflação pelo menos até o último trimestre do ano. Este é o Brasil de verdade; o mundo de Guedes é outro. 

Descuido vacinal

Folha de S. Paulo

Governos e sociedade precisam reverter atraso na imunização de crianças e jovens contra Covid

São preocupantes os dados que mostram atrasos na vacinação de crianças e jovens contra a Covid no país, após uma bem-sucedida imunização dos adultos mais velhos.

A Folha noticiou, a partir de números do Ministério da Saúde, que mais da metade dos meninos e meninas de 5 a 11 anos que receberam a primeira dose da Pfizer pediátrica ou da Coronavac nos primeiros meses do ano podem estar com a segunda dose atrasada.

Ademais, apenas 30% dos brasileiros de 18 a 24 anos de idade apresentam o esquema vacinal com as três doses recomendadas desde dezembro do ano passado. Os percentuais de adesão, aliás, decrescem com as faixas etárias.

Parece intuitivo que a queda da letalidade do coronavírus —a média diária de mortes deixou a casa dos milhares e hoje ronda uma centena— leva a um relaxamento com os imunizantes, a despeito da boa procura inicial. Na população, mais de três quartos tomaram duas doses ou dose única, segundo o consórcio de veículos de imprensa.

Se os cuidados diminuíram na sociedade, do Ministério da Saúde é que não se deve esperar maior diligência no governo de Jair Bolsonaro (PL). Nunca será demais lembrar que o presidente liderou uma ofensiva de desinformação a respeito das vacinas contra a Covid.

Quanto ao público infantil, cumpre dizer que o cenário já era alarmante antes da pandemia no que diz respeito a outras doenças, com alta da chamada taxa de abandono.

Isto é, os pais já vinham deixando de levar seus filhos para completar a proteção contra, por exemplo, sarampo, rubéola, caxumba (a tríplice viral, com duas doses) e poliomielite (três doses).

No caso da Covid, esse movimento ganhou o estímulo macabro das autoridades negacionistas. Em vez de campanhas como as protagonizadas no passado pelo Zé Gotinha, a pasta da Saúde ocupou-se de dificultar a imunização infantil.

Além de minimizar a necessidade e a urgência da vacina, defendeu uma despropositada consulta pública para recomendar que crianças de 5 a 11 anos fossem atendidas —desde que mediante a apresentação de prescrição médica e consentimento dos pais.

Com a bem-vinda volta das aulas presenciais e diante do aumento do número de novos casos e reinfecções, todos os níveis de governo deveriam se articular para promover a imunização completa de crianças e jovens, com campanhas efetivas de esclarecimento.

A sociedade também precisa fazer sua parte. É fundamental o retorno às atividades econômicas e sociais, portanto não há motivo para retrocessos e riscos no processo de prevenção da doença.

Robôs humanos

Folha de S. Paulo

Empresas se dedicam a promover percepções falsas de repercussão em redes sociais

Há algo de podre no reino das redes sociais. Num ambiente em que o número de seguidores, curtidas, comentários e compartilhamentos constitui a medida de todas as coisas, vê-se que empresas inflam artificialmente o "engajamento" de seus clientes por meio de contas falsas em plataformas como TikTok, Facebook e Instagram.

Esses perfis inautênticos são controlados por pessoas que, atraídas por promessas de ganhos extras, chegam a gerir até 500 contas diferentes, convertendo-se em verdadeiros "bots" (ou robôs) humanos.

Trata-se de uma prática que, obviamente, gera percepções falsas de relevância e repercussão.

Uma quantidade maior de curtidas ou seguidores termina por trazer mais visibilidade àqueles que contratam o serviço, como celebridades e políticos, chamando a atenção de marcas interessadas em patrocinar os perfis e fazendo com que estes sejam privilegiados pelos algoritmos das redes, num ciclo que se retroalimenta.

Ações do tipo violam os termos de uso da maioria das redes sociais que, ao detectarem-nas, costumam suspender ou bloquear os perfis falsos. Há, contudo, uma miríade de truques circulando pela internet para fazer com que as contas pareçam autênticas e consigam driblar as punições que a manipulação artificial pode acarretar.

A fim de compensar os baixos rendimentos recebidos, já que o pagamento por interação varia de R$ 0,001 a R$ 0,05, os usuários são incentivados a criar múltiplas contas. Para tanto, valem-se de softwares oferecidos pelas próprias empresas que os contratam.

Tais recursos permitem ações de forma automatizada —ampliando, assim, o alcance da fraude.

Os números desse mercado são desconhecidos, mas um estudo recente oferece alguns indícios de sua magnitude a partir da quantidade de acessos individuais às principais plataformas de cliques.

Em junho de 2021, a Dizu teve 1,3 milhão de visitantes únicos, seguida da GanharNoInsta, com 1,2 milhão, da SigaSocial (276 mil), da Kzom (190 mil) e da Everve (67 mil).

Embora inexistam no país leis que vedem a comercialização desse impulsionamento artificial, a situação pode mudar caso a Lei das Fake News venha a ser aprovada pelo Congresso —uma vez que o projeto de lei estabelece regras que buscam obstar o funcionamento de contas falsas nas redes.

Mas é difícil acreditar que uma lei possa ter alcance amplo se as próprias redes não agirem de forma mais decidida contra o problema.

Faltar à Cúpula das Américas seria erro para Bolsonaro

O Globo

A Cúpula das Américas, marcada para o início de junho em Los Angeles, seria uma excelente oportunidade para o presidente Jair Bolsonaro reduzir o isolamento que sua política externa impôs ao Brasil. Até o momento ele não informou ao Itamaraty se pretende ir. Parece preferir evitar passar mais uma vergonha internacional às vésperas da campanha eleitoral. Deixar de ir seria um erro.

Na cúpula, Bolsonaro teria uma chance de encontrar o anfitrião Joe Biden e, pelo menos, tentar atenuar a trapalhada que cometeu ao demorar a reconhecer a vitória dele nas eleições de 2020 sobre Donald Trump. Os profissionais do Itamaraty e do Departamento de Estado saberiam conduzir o aperto de mão sem constrangimento a nenhuma das partes. Bastaria Bolsonaro ter vontade de fazer o gesto, que é do interesse do Brasil.

Infelizmente, o histórico diplomático de Bolsonaro não é animador. Sua política externa é ditada por afinidades ideológicas e pelas fabulações de youtubers e tuiteiros que se consideram em guerra contra um certo “globalismo”. O último de seus tropeços foi voar a Moscou para se declarar “solidário” a Vladimir Putin, quando os tanques russos já se preparavam para invadir a Ucrânia. Depois foi árduo o trabalho do Itamaraty para buscar um ponto de equilíbrio entre as catástrofes da diplomacia bolsonarista e as posições históricas do Brasil contra agressões à soberania de qualquer país.

A presença de Bolsonaro em Los Angeles também poderia servir para mitigar os danos causados à imagem brasileira pela política ambiental de seu governo e pelo discurso ideológico, capaz de isolar o Brasil até no próprio continente. Quando Alberto Fernández assumiu a Presidência da Argentina, em 2019, o Itamaraty também teve de se esforçar para estabelecer alguma relação entre os dois, apesar de as economias brasileira e argentina estarem indissoluvelmente imbricadas.

Não há maior prova dos prejuízos trazidos pela visão ideológica da diplomacia bolsonarista do que o desdém que o Planalto parece ter pelo acordo comercial fechado entre o Mercosul e a União Europeia depois de dez anos de negociações. Uma vez em vigor, seria o maior tratado de livre-comércio de que o Brasil faria parte. Isso exigiria relações fluidas com adversários ideológicos como o argentino Fernández ou o francês Emmanuel Macron. Mas Bolsonaro é incapaz de pôr o interesse nacional na frente de suas idiossincrasias. Em suas ridículas investidas internacionais, prefere encenar rapapés a autocratas como Putin ou o húngaro Viktor Orbán.

Os Estados Unidos não convidaram para a Cúpula das Américas três ditaduras, todas de esquerda: Cuba, Venezuela e Nicarágua. Em protesto, o México de Andrés Manuel López Obrador e a Argentina de Fernández pensaram em não comparecer. Ainda que por motivação ideológica, Bolsonaro, como opositor das três, poderia ver na atitude americana mais um motivo para confirmar sua presença. Espera-se que decida ir, pois nada justifica a ausência do maior país da América do Sul.

Governo usa projeto de internet por satélite de Musk para desinformar

O Globo

Na ânsia de faturar politicamente com a visita-relâmpago de Elon Musk ao Brasil, Jair Bolsonaro deu mais uma prova de sua capacidade singular para desinformar. Afirmou que o serviço de internet por satélite oferecido pela empresa de Musk ajudará a preservar a Amazônia. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, foi mais fundo na desinformação: “O satélite pode nos informar que estava ali uma serra elétrica, e o governo vai conferir se é um lugar onde está tendo desmatamento legal ou ilegal”.

As declarações partem de três premissas falsas. Primeira: os satélites da Starlink, de Musk, não foram concebidos para sensoriamento remoto ou imagens, como Faria deu a entender. São satélites de comunicação. Segunda: não faltam informações sobre onde e quando acontecem os desmatamentos. O Brasil é pioneiro no monitoramento de florestas por satélites desde a década de 1970. Há anos conta com os sistemas mais avançados do mundo, ambos do Inpe: o Deter, com cobertura de áreas acima de 25 hectares, e o Prodes, para áreas superiores a 6,2 hectares. Instituições independentes emitem dados complementares.

A terceira premissa falsa, a mais grave, é supor que exista interesse do atual governo em fiscalizar e punir. Das áreas desmatadas identificadas entre 2019 e 2021, apenas 5% foram alvo de embargo ou autuação do Ibama, segundo o relatório da parceria entre Instituto Democracia e Sustentabilidade e MapBiomas. É notório o esvaziamento dos órgãos de monitoramento e fiscalização pelo atual governo. Desde a posse de Bolsonaro, a área desmatada cresceu 75%, de acordo com os dados disponíveis. É um descalabro.

Preocupado em tirar selfies e difundir propaganda nas redes sociais, Bolsonaro se esqueceu de dar mais ênfase ao que teria sido a parte da visita de Musk com mais chance de ajudar o país: a tentativa de oferecer internet rápida e barata na Amazônia e em áreas remotas, onde a melhor solução é a tecnologia via satélite. Por usar satélites de baixa órbita, a Starlink de Musk poderá, uma vez concluída sua implantação, oferecer conexão mais confiável e com menor tempo de resposta. Há, porém, serviços concorrentes em desenvolvimento, como o Project Kuiper, do também bilionário Jeff Bezos, ou o OneWeb. Nenhum deles é exclusivo para o Brasil ou para a Amazônia.

Espalhados pela região amazônica, pelos menos 700 mil vivem em reservas extrativistas, terras indígenas e comunidades quilombolas que poderiam ser beneficiadas com a instalação de internet rápida não só em escolas, mas também em postos de saúde. “É imenso o potencial ganho que essa população poderia ter com a medicina à distância”, afirma Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas.

A questão não é se satélites de baixa órbita podem ser parte da solução para o isolamento e a pobreza na Amazônia. A dúvida é se a empresa de Musk seria a melhor opção. Não se sabe nada sobre o serviço que oferecerá, nem especificação nem custo. Ele hoje tem a mesma densidade do vácuo sideral. Houve tietagem de mais, trabalho de menos.

Evasão e reprovação apontam prioridades no ensino

Valor Econômico

Implantação do ensino em período integral nas redes públicas se tornou mais do que importante para viabilizar a recuperação do aprendizado

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro exibia pretensa preocupação com a conexão de escolas rurais com a internet e intimidade com o bilionário Elon Musk e a Câmara dos Deputados apressava-se em aprovar em regime de urgência o ensino em casa (“homeschooling”), novos dados divulgados pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostravam em detalhes os efeitos danosos da pandemia no ensino, evidenciando as reais prioridades na área da educação.

O Inep informou que a segunda etapa do Censo Escolar da Educação Básica mostrou que a taxa de abandono no ensino médio dobrou com a pandemia, passando de 2,3% para 5% entre 2020 e 2021. O desastre foi puxado pela rede pública estadual já que na privada houve estabilidade. Também houve aumento nas taxas de abandono do ensino fundamental, de 1% para 1,2%, chegando a 2,1% nos anos finais, do sexto ao nono ano. Na rede privada, caiu para 0,2% em 2021. Em algumas regiões, o quadro é ainda pior. Nos Estados do Norte, a taxa de abandono do ensino médio chegou a 10,1%; e, no ensino fundamental, a 2,5%.

O Censo Escolar da Educação Básica também mostrou aumento na taxa de reprovação dos estudantes em 2021. No ensino fundamental, ela foi de 2%, subindo para 4,2% no ensino médio: 11,7% nas escolas federais, 4% nas estaduais e 1,6% nas privadas.

Esses dados compõem o quadro do impacto negativo da pandemia na educação e são coerentes com outras informações. Pesquisas confirmam o efeito mais negativo nas crianças menores, menos preparadas para acompanhar aulas on-line. Segundo os próprios pais, menos da metade das crianças de 6 a 7 anos (46%) sabem ler e escrever nas escolas públicas em comparação com 60% em 2019. Houve declínio também nas privadas, de 78% para 69%.

O professor do Insper, Naércio Menezes Filho, menciona em artigo publicado no Valor (20/5) estudo importante que mostra que as crianças que estavam na pré-escola em 2020 aprenderam apenas 64% do que havia sido absorvido em matemática pelas crianças da geração de 2019, sendo que as mais pobres somente metade e as mais ricas, 75%. Segundo o estudo houve até um aumento de 14% nas crianças de 2020 que não conseguiam se sentar e se levantar do chão sem usar algum apoio, provavelmente porque ficaram muito tempo em casa durante a pandemia, operando o celular ou o computador.

A defasagem na aprendizagem pelo longo tempo de escolas fechadas dado o atraso na vacinação da população brasileira e as dificuldades de se viabilizar o ensino remoto, seja por deficiência das escolas ou da tecnologia deve trazer consequências a longo prazo na vida da geração Covid. O Brasil está entre os países do G-20 onde os estudantes terão as maiores perdas de rendimentos ao longo da vida em consequência das deficiências de aprendizagem durante a pandemia. Fica atrás apenas da Indonésia e do México, segundo estudo do Fundo Monetário Internacional. Os ganhos médios de estudantes brasileiros serão 9,1% menores ao longo da vida por causa do fechamento das escolas. Na Indonésia, a perda é de 9,7%, e, no México, de 9,9%. A perda será maior entre as classes de renda mais baixa.

Esse quadro não é uma maldição inescapável e poderia ser corrigido ou minorado por atuação do governo. Naércio detalha algumas providências em seu artigo. Um dos primeiros passos seria o governo fazer uma avaliação da situação atual dos estudantes em todo o país, por faixa etária e rede de ensino, para basear um plano para corrigir as deficiências encontradas no menor tempo possível. Ele sugere o engajamento dos agentes da Estratégia Saúde da Família (ESF), que atinge 60% dos domicílios, para buscar as crianças que estão fora da escola e conter a evasão escolar.

Em “live” realizada pelo Valor (16/5) a CEO do Itaú Social, Angela Dannemann, disse que a implantação do ensino em período integral nas redes públicas se tornou mais do que importante para viabilizar a recuperação do aprendizado, com a ajuda de ONGs para oferecer atividades complementares. Segundo ela, turnos de apenas quatro horas de aula são mais “uma jabuticaba brasileira”.

A recuperação da defasagem do aprendizado exige parceria entre os governos estaduais e municipais, dada a descentralização do sistema, com envolvimento da sociedade, que deveria ser capitaneado pelo governo federal. No entanto, o que se vê é a preferência do Planalto por eventos midiáticos, em conluio com a Câmara dos Deputados, que acha urgente o “homeschooling” nesse cenário catastrófico para o ensino.

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