Editoriais
Ação entre amigos
O Estado de S. Paulo
Compra superfaturada de caminhões de lixo é o mais novo capítulo dessa singular parceria entre Bolsonaro e o Centrão. O que pensa o procurador-geral da República?
A conjunção de um presidente incapaz, uma
grei de parlamentares oportunistas e um procurador-geral da República que não
demonstra ter gana para cumprir o papel que a Constituição lhe reserva criou
esse ambiente singular no qual vultosos recursos do Orçamento são usurpados à
luz do dia para financiar ambições estranhas ao interesse público praticamente
sem reação. Poucas vezes em nossa história republicana foi tão fácil para uma
plêiade de políticos indignos de seus mandatos malversar recursos públicos. Vedações
legais, imperativos morais ou espírito público parecem meros detalhes incapazes
de fazê-los perder algumas horas de sono que sejam.
O jornalismo profissional e independente tem feito a parte que lhe cabe para a construção de uma sociedade democrática, vale dizer, uma sociedade informada, livre e participativa. Nos últimos três anos e meio, só o Estadão revelou mais escândalos de corrupção do que o governo que se jacta de ter “acabado com a corrupção” em Brasília teria coragem de admitir. A rigor, antes mesmo de Jair Bolsonaro tomar posse como presidente da República este jornal já havia revelado ao País o esquema das “rachadinhas”, lançando luz sobre as suspeitas de peculato, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito que recaem sobre o filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, e o “faz-tudo” do clã, o notório Fabrício Queiroz.
Desde então, o País tomou conhecimento,
entre outros malfeitos, do “orçamento secreto”, esquema urdido no Palácio do
Planalto para evitar o impeachment de Bolsonaro, e assistiu ao governo tomar
uma nova forma: a submissão quase absoluta do presidente da República aos
interesses do Centrão, grupo político que hoje é liderado pelo presidente da
Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e por seu correligionário à frente
da Casa Civil, o ministro Ciro Nogueira (PP-PI).
Essa parceria – chamemos assim – entre o
governo e o Centrão tem se notabilizado menos pelas boas políticas públicas que
poderiam advir de uma união de forças entre um Executivo e um Legislativo mais
ciosos da realidade do País do que pelas suspeitas de corrupção que se sucedem
a cada apuração de jornalistas que ousam não se dar por vencidos, a despeito
dos fortes ataques de que têm sido vítimas.
Recursos do “orçamento secreto”, uma
excrescência por si só, foram usados para comprar ônibus escolares
superfaturados. Os veículos foram distribuídos de forma absolutamente
antirrepublicana, privilegiando municípios governados por amigos – e até mesmo
parentes – dos mandachuvas de turno. Depois, vieram os tratores, que, assim
como os ônibus, foram adquiridos a preços muito discrepantes da realidade de
mercado e por meio de convênios entre municípios escolhidos a dedo e a
Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba
(Codevasf). A Codevasf, aliás, é um capítulo muito peculiar na história da
“parceria” entre Bolsonaro e o Centrão. Sob o atual governo, a chamada “estatal
do Centrão” foi inchada a tal ponto que passou a abarcar projetos em cidades
que distam até 1,5 mil quilômetros das águas dos rios que batizam a empresa.
No domingo passado, o Estadão revelou
mais um esquema envolvendo veículos pesados: a compra superfaturada de
caminhões de lixo. Após análise de mais de 1,2 mil documentos durante dois
meses, o jornal constatou um aumento de 500% nas compras de caminhões de lixo
pelo governo Bolsonaro. Novamente, Ciro Nogueira aparece no centro das
apurações. Só a empresa de uma amiga do ministro-chefe da Casa Civil firmou
contrato de quase R$ 12 milhões com a Codevasf para fornecimento de 40
caminhões de lixo. As compras são dissociadas de quaisquer políticas de
saneamento básico. A título de exemplo, no Piauí, Estado de Ciro Nogueira, 89%
dos municípios descartam os dejetos em “lixões” a céu aberto. Segundo
especialistas, até os modelos dos caminhões, do tipo compactador, são
inapropriados para municípios com menos de 17 mil habitantes, como são a
maioria das cidades atendidas por essas compras.
Diante das informações que a imprensa apura
e publica diariamente e das evidentes suspeitas de corrupção, cabe perguntar: o
que pensa o procurador-geral da República?
Um quadro sombrio para a educação
O Estado de S. Paulo
Escolas fechadas por tempo excessivo foi só um dos graves erros cometidos pelas autoridades na pandemia; estudo do FMI mostra que sequelas no Brasil são ainda piores
Em relatório intitulado Minimizando
as Cicatrizes da Pandemia, o Fundo Monetário Internacional
(FMI) diagnosticou a dimensão e a complexidade das sequelas socioeconômicas a
serem enfrentadas, como perdas na produção econômica, desemprego, dívida das
empresas, vulnerabilidades das indústrias ou déficits de aprendizagem.
No caso do Brasil, a educação é
possivelmente o setor no qual a sequela é mais grave. Duplamente grave.
Primeiro pelo impacto em si da ruptura, devido ao fechamento desproporcional
das escolas. Depois, porque de todas as sequelas ela é a mais negligenciada.
O Brasil esteve entre os países onde as
escolas permaneceram fechadas por mais tempo. Em 2020, por exemplo, enquanto a
média entre os países da OCDE foi de 44 dias letivos, no Brasil foram 178.
O fechamento impactou o acesso à nutrição e
serviços de saúde como programas de vacinação para muitas crianças pobres, além
dos abalos à saúde emocional com o declínio das interações sociais.
Os retrocessos na acumulação de capital
humano tendem a ser brutais, pesando sobre a produtividade e a desigualdade por
décadas. Além da redução do capital humano em si, as perdas de capital físico
se traduzirão em menos investimentos. O declínio nos níveis de habilidades
tende a aumentar o trabalho informal e ampliar as desigualdades.
O FMI calcula que os ganhos médios dos
estudantes brasileiros impactados pelo fechamento das escolas serão 9,1%
menores ao longo da vida. É o terceiro pior resultado entre os países do G-20.
Escusado dizer que essa é uma média. As perdas serão muito maiores para as
classes baixas. Em perda de aprendizado, o País está na penúltima colocação.
Um levantamento da Unesco, do Unicef e do
Banco Mundial sumariou as diretrizes para Um Caminho de
Recuperação. Manter as escolas abertas é prioridade. Isso seria
óbvio, não fosse o histórico do Brasil e os recorrentes flertes com mais
fechamentos. Ante eventuais novos surtos, é inaceitável que protocolos como
redução do tamanho das classes e sistemas de turnos não sejam aplicados.
O primeiro passo para a recuperação é
desenvolver sistemas de avaliação dos níveis de aprendizado dos estudantes que
reflitam seus contextos e subgrupos. Essas avaliações serão cruciais para
subsidiar os programas de recuperação. Esses programas devem ser modulados com
uma mescla de técnicas comprovadas, como consolidação do currículo, extensão do
tempo de aula ou aumento da eficiência do ensino por meio de uma instrução
focada, pedagogias estruturadas, grupos seletos de tutoria e programas de
ensino autoguiados.
Além das perdas de aprendizagem, é
essencial mitigar as perdas socioemocionais com programas de apoio psicossocial
às escolas.
Há várias boas práticas no mundo a serem
emuladas. O Reino Unido, por exemplo, aprovou um fundo para apoiar a
recuperação acadêmica e a saúde mental dos estudantes. A fim de aumentar a
resiliência do sistema educacional contra futuras rupturas, a Coreia do Sul
dedicou uma parcela significativa de seu pacote de estímulos a desenvolver
infraestrutura digital e aprimorar as habilidades dos professores no ensino
remoto. China, Coreia e Arábia Saudita projetaram programas de assistência
financeira a famílias de baixa renda para acessar dispositivos digitais e ampliar
a conectividade.
Como disse a Unesco, “agora é o momento de
mudar da crise para a recuperação – e, além da recuperação, para sistemas de
educação resilientes e transformativos que realmente entreguem aprendizagem e
bem-estar para todas as crianças e jovens”.
Durante a pandemia, a regra no Brasil, em
que pesem as exceções que a confirmam, foi a negligência, notavelmente por
parte do governo federal. Não há como voltar atrás e restaurar o tempo perdido
com as escolas fechadas. No início, os excessos podiam ser, se não
justificados, ao menos escusados pelo medo. À medida que se conhecia melhor a
real ameaça do vírus, insistir no fechamento já foi uma estupidez que, agora,
redobrou o desafio educacional imposto pela pandemia. Negligenciá-lo uma
terceira vez será perversidade.
A crise real que Guedes ignora
O Estado de S. Paulo
A inflação, que não preocupa o ministro, ameaça a sobrevivência de pequenas empresas, incapazes de pagar dívidas
O mundo de maravilhas em que se transformou
o Brasil na visão imaginosa (e eleitoreira) do ministro da Economia, Paulo
Guedes, está muito distante do mundo real em vivem milhões de brasileiros cuja
renda, quando a têm, está sendo corroída, e outros milhões de empreendedores
que enfrentam dificuldades cada vez maiores para pagar suas dívidas. Tudo por
causa do “inferno” da inflação, do qual, garante Guedes, o País já saiu. Os
dados o desmentem e analistas privados preveem que a inflação continuará alta.
E a atividade econômica se manterá muito fraca.
Enquanto o fantasma do desemprego continua
a assombrar os trabalhadores, sistemática e silenciosamente a inflação vai
corroendo a capacidade financeira de todos, empregados e empregadores,
trabalhadores por conta própria, pessoas sem ocupação, mas que têm alguma
poupança para sobreviver por meios próprios e empresas de menor porte.
Essas empresas são responsáveis por boa
parte dos empregos no País, além de, no caso de microempreendimentos, terem se
transformado em fonte de renda para muitos trabalhadores que, em razão da baixa
atividade econômica, perderam a ocupação anterior. A crise financeira por que
elas passam por causa da inflação, em alta desde o ano passado, e adicionalmente
por causa do aumento dos juros ameaça a continuidade de suas operações e afeta
a estabilidade de muitos fornecedores.
Caso o problema não seja resolvido de
alguma forma, o impacto sobre o mercado de trabalho e sobre a produção poderá
ser forte. Especialistas em crédito sugerem que só uma grande operação de
renegociação das dívidas aliviará a situação dessas empresas. Em média, cada
uma delas tem dívidas com sete fornecedores. O quadro é preocupante.
Dificuldades financeiras das micro e
pequenas empresas vêm se acentuado pelo menos desde agosto do ano passado, de
acordo com os indicadores da Serasa Experian. Os últimos dados disponíveis
referem-se a março, quando o total de pequenas e microempresas inadimplentes
alcançou 6,1 milhões.
Uma plataforma especializada em concessão
de crédito para pequenas e microempresas, com ativos estimados em R$ 250
milhões, estima em cerca de 20% o estoque de crédito que precisa ser
refinanciado. Da dívida total, cerca de 80% são com fornecedores, não com
bancos.
Aumento do prazo para a quitação, que
resulta na queda do valor da prestação, pode ser um dos caminhos para preservar
algum caixa. No caso da plataforma citada acima, o valor médio das prestações
pode cair de R$ 5 mil para R$ 4 mil.
A inflação, que deixou de ser problema para
Guedes, afeta duramente as finanças das empresas de menor porte porque faz
subir os preços dos insumos. A baixa atividade econômica inibe a correção dos
preços cobrados pelas empresas devedoras, cuja margem, por isso, está sendo
corroída. Assim, reduz-se sua capacidade de pagar as prestações da dívida.
Praticamente ninguém que conhece o mundo real vê alívio da inflação pelo menos até o último trimestre do ano. Este é o Brasil de verdade; o mundo de Guedes é outro.
Descuido vacinal
Folha de S. Paulo
Governos e sociedade precisam reverter
atraso na imunização de crianças e jovens contra Covid
São preocupantes os dados que mostram
atrasos na vacinação de crianças e jovens contra a Covid no país, após uma
bem-sucedida imunização dos adultos mais velhos.
A Folha
noticiou, a partir de números do Ministério da Saúde, que mais da
metade dos meninos e meninas de 5 a 11 anos que receberam a primeira dose da
Pfizer pediátrica ou da Coronavac nos primeiros meses do ano podem estar com a
segunda dose atrasada.
Ademais, apenas 30% dos
brasileiros de 18 a 24 anos de idade apresentam o esquema
vacinal com as três doses recomendadas desde dezembro do ano passado. Os
percentuais de adesão, aliás, decrescem com as faixas etárias.
Parece intuitivo que a queda da letalidade
do coronavírus —a média diária de mortes deixou a casa dos milhares e hoje
ronda uma centena— leva a um relaxamento com os imunizantes, a despeito da boa
procura inicial. Na população, mais de três quartos tomaram duas doses ou dose
única, segundo o consórcio de veículos de imprensa.
Se os cuidados diminuíram na sociedade, do
Ministério da Saúde é que não se deve esperar maior diligência no governo de
Jair Bolsonaro (PL). Nunca será demais lembrar que o presidente liderou uma
ofensiva de desinformação a respeito das vacinas contra a Covid.
Quanto ao público infantil, cumpre dizer
que o cenário já era alarmante antes da pandemia no que diz respeito a outras
doenças, com alta da chamada taxa de abandono.
Isto é, os pais já vinham deixando de levar
seus filhos para completar a proteção contra, por exemplo, sarampo, rubéola,
caxumba (a tríplice viral, com duas doses) e poliomielite (três doses).
No caso da Covid, esse movimento ganhou o
estímulo macabro das autoridades negacionistas. Em vez de campanhas como as
protagonizadas no passado pelo Zé Gotinha, a pasta da Saúde ocupou-se de
dificultar a imunização infantil.
Além de minimizar a necessidade e a
urgência da vacina, defendeu uma despropositada consulta pública para
recomendar que crianças de 5 a 11 anos fossem atendidas —desde que mediante a
apresentação de prescrição médica e consentimento dos pais.
Com a bem-vinda volta das aulas presenciais
e diante do aumento do número de novos casos e reinfecções, todos os níveis de
governo deveriam se articular para promover a imunização completa de crianças e
jovens, com campanhas efetivas de esclarecimento.
A sociedade também precisa fazer sua parte.
É fundamental o retorno às atividades econômicas e sociais, portanto não há
motivo para retrocessos e riscos no processo de prevenção da doença.
Robôs humanos
Folha de S. Paulo
Empresas se dedicam a promover percepções
falsas de repercussão em redes sociais
Há algo de podre no reino das redes
sociais. Num ambiente em que o número de seguidores, curtidas, comentários e
compartilhamentos constitui a medida de todas as coisas, vê-se que empresas inflam
artificialmente o "engajamento" de seus clientes por meio de contas
falsas em plataformas como TikTok, Facebook e Instagram.
Esses perfis inautênticos são controlados
por pessoas que, atraídas por promessas de ganhos extras, chegam a gerir até
500 contas diferentes, convertendo-se em verdadeiros "bots" (ou
robôs) humanos.
Trata-se de uma prática que, obviamente,
gera percepções falsas de relevância e repercussão.
Uma quantidade maior de curtidas ou
seguidores termina por trazer mais visibilidade àqueles que contratam o
serviço, como celebridades e políticos, chamando a atenção de marcas
interessadas em patrocinar os perfis e fazendo com que estes sejam privilegiados
pelos algoritmos das redes, num ciclo que se retroalimenta.
Ações do tipo violam os termos de uso da
maioria das redes sociais que, ao detectarem-nas, costumam suspender ou
bloquear os perfis falsos. Há, contudo, uma miríade de truques circulando pela
internet para fazer com que as contas pareçam autênticas e consigam driblar as
punições que a manipulação artificial pode acarretar.
A fim de compensar os baixos rendimentos
recebidos, já que o pagamento por interação varia de R$ 0,001 a R$ 0,05, os
usuários são incentivados a criar múltiplas contas. Para tanto, valem-se de
softwares oferecidos pelas próprias empresas que os contratam.
Tais recursos permitem ações de forma
automatizada —ampliando, assim, o alcance da fraude.
Os números desse mercado são desconhecidos,
mas um estudo recente oferece alguns indícios de sua magnitude a partir da
quantidade de acessos individuais às principais plataformas de cliques.
Em junho de 2021, a Dizu teve 1,3 milhão de
visitantes únicos, seguida da GanharNoInsta, com 1,2 milhão, da SigaSocial (276
mil), da Kzom (190 mil) e da Everve (67 mil).
Embora inexistam no país leis que vedem a
comercialização desse impulsionamento artificial, a situação pode mudar caso a
Lei das Fake News venha a ser aprovada pelo Congresso —uma vez que o projeto de
lei estabelece regras que buscam obstar o funcionamento de contas falsas nas
redes.
Mas é difícil acreditar que uma lei possa
ter alcance amplo se as próprias redes não agirem de forma mais decidida contra
o problema.
Faltar à Cúpula das Américas seria erro
para Bolsonaro
O Globo
A Cúpula das Américas, marcada para o
início de junho em Los Angeles, seria uma excelente oportunidade para o
presidente Jair Bolsonaro reduzir o isolamento que sua política externa impôs
ao Brasil. Até o momento ele não informou ao Itamaraty se pretende ir. Parece
preferir evitar passar mais uma vergonha internacional às vésperas da campanha
eleitoral. Deixar de ir seria um erro.
Na cúpula, Bolsonaro teria uma chance de
encontrar o anfitrião Joe Biden e, pelo menos, tentar atenuar a trapalhada que
cometeu ao demorar a reconhecer a vitória dele nas eleições de 2020 sobre
Donald Trump. Os profissionais do Itamaraty e do Departamento de Estado
saberiam conduzir o aperto de mão sem constrangimento a nenhuma das partes.
Bastaria Bolsonaro ter vontade de fazer o gesto, que é do interesse do Brasil.
Infelizmente, o histórico diplomático de
Bolsonaro não é animador. Sua política externa é ditada por afinidades
ideológicas e pelas fabulações de youtubers e tuiteiros que se consideram em
guerra contra um certo “globalismo”. O último de seus tropeços foi voar a
Moscou para se declarar “solidário” a Vladimir Putin, quando os tanques russos
já se preparavam para invadir a Ucrânia. Depois foi árduo o trabalho do
Itamaraty para buscar um ponto de equilíbrio entre as catástrofes da diplomacia
bolsonarista e as posições históricas do Brasil contra agressões à soberania de
qualquer país.
A presença de Bolsonaro em Los Angeles
também poderia servir para mitigar os danos causados à imagem brasileira pela
política ambiental de seu governo e pelo discurso ideológico, capaz de isolar o
Brasil até no próprio continente. Quando Alberto Fernández assumiu a
Presidência da Argentina, em 2019, o Itamaraty também teve de se esforçar para
estabelecer alguma relação entre os dois, apesar de as economias brasileira e
argentina estarem indissoluvelmente imbricadas.
Não há maior prova dos prejuízos trazidos
pela visão ideológica da diplomacia bolsonarista do que o desdém que o Planalto
parece ter pelo acordo comercial fechado entre o Mercosul e a União Europeia
depois de dez anos de negociações. Uma vez em vigor, seria o maior tratado de
livre-comércio de que o Brasil faria parte. Isso exigiria relações fluidas com
adversários ideológicos como o argentino Fernández ou o francês Emmanuel
Macron. Mas Bolsonaro é incapaz de pôr o interesse nacional na frente de suas
idiossincrasias. Em suas ridículas investidas internacionais, prefere encenar
rapapés a autocratas como Putin ou o húngaro Viktor Orbán.
Os Estados Unidos não convidaram para a
Cúpula das Américas três ditaduras, todas de esquerda: Cuba, Venezuela e Nicarágua.
Em protesto, o México de Andrés Manuel López Obrador e a Argentina de Fernández
pensaram em não comparecer. Ainda que por motivação ideológica, Bolsonaro, como
opositor das três, poderia ver na atitude americana mais um motivo para
confirmar sua presença. Espera-se que decida ir, pois nada justifica a ausência
do maior país da América do Sul.
Governo usa projeto de internet por
satélite de Musk para desinformar
O Globo
Na ânsia de faturar politicamente com a
visita-relâmpago de Elon Musk ao Brasil, Jair Bolsonaro deu mais uma prova de
sua capacidade singular para desinformar. Afirmou que o serviço de internet por
satélite oferecido pela empresa de Musk ajudará a preservar a Amazônia. O
ministro das Comunicações, Fábio Faria, foi mais fundo na desinformação: “O
satélite pode nos informar que estava ali uma serra elétrica, e o governo vai
conferir se é um lugar onde está tendo desmatamento legal ou ilegal”.
As declarações partem de três premissas
falsas. Primeira: os satélites da Starlink, de Musk, não foram concebidos para
sensoriamento remoto ou imagens, como Faria deu a entender. São satélites de
comunicação. Segunda: não faltam informações sobre onde e quando acontecem os
desmatamentos. O Brasil é pioneiro no monitoramento de florestas por satélites
desde a década de 1970. Há anos conta com os sistemas mais avançados do mundo,
ambos do Inpe: o Deter, com cobertura de áreas acima de 25 hectares, e o
Prodes, para áreas superiores a 6,2 hectares. Instituições independentes emitem
dados complementares.
A terceira premissa falsa, a mais grave, é
supor que exista interesse do atual governo em fiscalizar e punir. Das áreas
desmatadas identificadas entre 2019 e 2021, apenas 5% foram alvo de embargo ou
autuação do Ibama, segundo o relatório da parceria entre Instituto Democracia e
Sustentabilidade e MapBiomas. É notório o esvaziamento dos órgãos de
monitoramento e fiscalização pelo atual governo. Desde a posse de Bolsonaro, a
área desmatada cresceu 75%, de acordo com os dados disponíveis. É um
descalabro.
Preocupado em tirar selfies e difundir
propaganda nas redes sociais, Bolsonaro se esqueceu de dar mais ênfase ao que
teria sido a parte da visita de Musk com mais chance de ajudar o país: a
tentativa de oferecer internet rápida e barata na Amazônia e em áreas remotas,
onde a melhor solução é a tecnologia via satélite. Por usar satélites de baixa
órbita, a Starlink de Musk poderá, uma vez concluída sua implantação, oferecer
conexão mais confiável e com menor tempo de resposta. Há, porém, serviços
concorrentes em desenvolvimento, como o Project Kuiper, do também bilionário
Jeff Bezos, ou o OneWeb. Nenhum deles é exclusivo para o Brasil ou para a
Amazônia.
Espalhados pela região amazônica, pelos
menos 700 mil vivem em reservas extrativistas, terras indígenas e comunidades
quilombolas que poderiam ser beneficiadas com a instalação de internet rápida
não só em escolas, mas também em postos de saúde. “É imenso o potencial ganho
que essa população poderia ter com a medicina à distância”, afirma Tasso
Azevedo, coordenador do MapBiomas.
A questão não é se satélites de baixa
órbita podem ser parte da solução para o isolamento e a pobreza na Amazônia. A
dúvida é se a empresa de Musk seria a melhor opção. Não se sabe nada sobre o
serviço que oferecerá, nem especificação nem custo. Ele hoje tem a mesma
densidade do vácuo sideral. Houve tietagem de mais, trabalho de menos.
Evasão e reprovação apontam prioridades no
ensino
Valor Econômico
Implantação do ensino em período integral
nas redes públicas se tornou mais do que importante para viabilizar a
recuperação do aprendizado
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro exibia
pretensa preocupação com a conexão de escolas rurais com a internet e
intimidade com o bilionário Elon Musk e a Câmara dos Deputados apressava-se em
aprovar em regime de urgência o ensino em casa (“homeschooling”), novos dados
divulgados pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep) mostravam em detalhes os efeitos danosos da pandemia no ensino,
evidenciando as reais prioridades na área da educação.
O Inep informou que a segunda etapa do
Censo Escolar da Educação Básica mostrou que a taxa de abandono no ensino médio
dobrou com a pandemia, passando de 2,3% para 5% entre 2020 e 2021. O desastre
foi puxado pela rede pública estadual já que na privada houve estabilidade.
Também houve aumento nas taxas de abandono do ensino fundamental, de 1% para
1,2%, chegando a 2,1% nos anos finais, do sexto ao nono ano. Na rede privada,
caiu para 0,2% em 2021. Em algumas regiões, o quadro é ainda pior. Nos Estados
do Norte, a taxa de abandono do ensino médio chegou a 10,1%; e, no ensino fundamental,
a 2,5%.
O Censo Escolar da Educação Básica também
mostrou aumento na taxa de reprovação dos estudantes em 2021. No ensino
fundamental, ela foi de 2%, subindo para 4,2% no ensino médio: 11,7% nas
escolas federais, 4% nas estaduais e 1,6% nas privadas.
Esses dados compõem o quadro do impacto
negativo da pandemia na educação e são coerentes com outras informações.
Pesquisas confirmam o efeito mais negativo nas crianças menores, menos
preparadas para acompanhar aulas on-line. Segundo os próprios pais, menos da
metade das crianças de 6 a 7 anos (46%) sabem ler e escrever nas escolas
públicas em comparação com 60% em 2019. Houve declínio também nas privadas, de
78% para 69%.
O professor do Insper, Naércio Menezes
Filho, menciona em artigo publicado no Valor (20/5) estudo importante que mostra que
as crianças que estavam na pré-escola em 2020 aprenderam apenas 64% do que
havia sido absorvido em matemática pelas crianças da geração de 2019, sendo que
as mais pobres somente metade e as mais ricas, 75%. Segundo o estudo houve até
um aumento de 14% nas crianças de 2020 que não conseguiam se sentar e se
levantar do chão sem usar algum apoio, provavelmente porque ficaram muito tempo
em casa durante a pandemia, operando o celular ou o computador.
A defasagem na aprendizagem pelo longo
tempo de escolas fechadas dado o atraso na vacinação da população brasileira e
as dificuldades de se viabilizar o ensino remoto, seja por deficiência das
escolas ou da tecnologia deve trazer consequências a longo prazo na vida da geração
Covid. O Brasil está entre os países do G-20 onde os estudantes terão as
maiores perdas de rendimentos ao longo da vida em consequência das deficiências
de aprendizagem durante a pandemia. Fica atrás apenas da Indonésia e do México,
segundo estudo do Fundo Monetário Internacional. Os ganhos médios de estudantes
brasileiros serão 9,1% menores ao longo da vida por causa do fechamento das
escolas. Na Indonésia, a perda é de 9,7%, e, no México, de 9,9%. A perda será
maior entre as classes de renda mais baixa.
Esse quadro não é uma maldição inescapável
e poderia ser corrigido ou minorado por atuação do governo. Naércio detalha
algumas providências em seu artigo. Um dos primeiros passos seria o governo
fazer uma avaliação da situação atual dos estudantes em todo o país, por faixa
etária e rede de ensino, para basear um plano para corrigir as deficiências
encontradas no menor tempo possível. Ele sugere o engajamento dos agentes da
Estratégia Saúde da Família (ESF), que atinge 60% dos domicílios, para buscar
as crianças que estão fora da escola e conter a evasão escolar.
Em “live” realizada pelo Valor (16/5) a CEO do Itaú
Social, Angela Dannemann, disse que a implantação do ensino em período integral
nas redes públicas se tornou mais do que importante para viabilizar a
recuperação do aprendizado, com a ajuda de ONGs para oferecer atividades
complementares. Segundo ela, turnos de apenas quatro horas de aula são mais
“uma jabuticaba brasileira”.
A recuperação da defasagem do aprendizado
exige parceria entre os governos estaduais e municipais, dada a
descentralização do sistema, com envolvimento da sociedade, que deveria ser
capitaneado pelo governo federal. No entanto, o que se vê é a preferência do
Planalto por eventos midiáticos, em conluio com a Câmara dos Deputados, que
acha urgente o “homeschooling” nesse cenário catastrófico para o ensino.
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