O Globo
No lançamento da candidatura Lula-Alckmin,
alguém alertou: — Quero fazer um escurecimento ou esclarecimento. Como nós
respeitamos as leis, a legislação e as instituições, é importante avisar e
deixar claro ou escuro que hoje nós não estamos lançando candidatura. Nós
estamos lançando, sim, um movimento.
Faltou respeitar o bom senso.
“Claro” é tudo o que seja fácil de ver ou
ouvir. “Esclarecer” é trazer à luz, tornar evidente. A substituição de “claro”
por “escuro” (do latim obscurus: sombrio, com pouca luz, incerto) faria parte
da luta contra a linguagem, entendida como ferramenta para a disseminação do
racismo (ao associar branco/claro a algo positivo, e preto/escuro ao seu
oposto).
Sim, a língua é dinâmica. Mas não há dinamismo que inverta da noite para o dia o significado de uma palavra ou subverta um conceito ancestral.
Um instante antes do bigue-bangue (se é que
se pode falar em “antes” com relação ao início de tudo), havia caos e escuridão
(ou “treva sobre o rosto do abismo”, na tradução de Haroldo de Campos). Segundo
a mitologia cristã, o universo teria sido criado a partir do “Fiat Lux”: “Seja
luz, e foi luz. E Deus viu que a luz era boa, e Deus dividiu entre a luz e a
treva”. Ciência e religião praticamente se tocam nesse ponto — e a sombra da
dicotomia luz x treva, claro x escuro nos acompanha desde que nos entendemos
como gente.
Será inútil mudar apenas as acepções no
dicionário. Teremos de rever nossa percepção de que é mais fácil enxergar no
claro que no escuro, abolir as leis da física que tratam da óptica, renomear o
Iluminismo (que se propunha a fazer triunfar a razão).
Os militantes rebaterão essa crítica com o
único argumento de que dispõem: a falácia de que “é só mais um branco que não
quer perder os privilégios que lhe foram conferidos por uma língua racista”.
Como se em qualquer língua, sociedade ou momento histórico a noção de claro e
escuro não fosse a mesma, sem relação com cor de pele.
Nem é preciso ter o dom da clarividência
—ou escurividência — para saber aonde isso vai nos levar: ao descrédito da luta
contra o racismo real, aquele explícito em “é coisa de preto”, “cabelo ruim”
etc.
Extrapolando, quem é antimilitarista não
deveria usar cabos USB, ser aspirante a nada, comer brigadeiro, participar de
eleições majoritárias e jamais generalizar. Teremos de desejar uma vida mais
leve e mais pesada para escapar da gordofobia. Tentar obter notas altas e
baixas nas provas, para diminuir o preconceito contra pessoas de estatura
reduzida. Instituir cursos de Direito e Esquerdo, para incluir os canhotos.
Passar a ofender as nulidades como sendo “um zero à direita”. Sim, a matemática
também é estruturalmente discriminatória.
Ao dizer que era “importante avisar”, a
apresentadora se esqueceu de que “importante” envolve superioridade e que
“avisar” tem a ver com visão (ad visum). Logo, perpetua a marginalização dos
oprimidos e dos que não veem. Na próxima vez, é melhor — ou pior — que diga que
“é importante ou insignificante avisar ou cegar”. Aí, sim, pode esclarecer e
obscurecer à vontade.
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