sábado, 14 de maio de 2022

Ricardo Henriques: Auxílio Brasil é retrocesso

O Globo

Programa escorrega no assistencialismo e perde virtudes essenciais do Bolsa Família. Tornou-se versão mais injusta e ineficiente

O Brasil enfrenta hoje uma crise social das mais graves em toda a sua História. Políticas públicas intersetoriais e focalizadas no combate à pobreza são instrumentos fundamentais para contornar esse quadro.

O primeiro passo para essa agenda ser efetiva é um programa de transferência de renda que reduza a pobreza e diminua sua reprodução intergeracional. Felizmente, já tivemos um programa eficaz: o Bolsa Família.

Deveríamos aproveitar a experiência acumulada, corrigir eventuais falhas e avançar para um desenho que atenda aos desafios atuais. O Programa Auxílio Brasil, no entanto, se mostra um retrocesso frente ao seu antecessor.

Pedro Ferreira de Souza e coautores, em artigo publicado pelo Ipea em 2019, concluíram que o Bolsa Família consegue fazer muito com recursos orçamentários modestos.

 Eles apontam que, entre 2001 e 2015, o grande mérito do programa foi justamente a qualidade de sua focalização, para além da sua efetividade na redução da pobreza (15%) e extrema pobreza (25%).

A efetividade do Bolsa Família é reconhecida internacionalmente. Em 2015, o Fundo Monetário Internacional (FMI) destacou em relatório sobre a economia brasileira sua contribuição para “redução da pobreza a um nível histórico”.

Em 2020, a OCDE recomendou, no documento Economic Surveys: Brazil, sua ampliação como uma das estratégias para enfrentamento dos efeitos da pandemia.

Não obstante, o programa necessitava de refinamentos no volume de recursos, na distribuição per capita do benefício e na atualização das famílias no Cadastro Único (CadÚnico). Será que o Auxílio Brasil contempla esses aprimoramentos?

É preciso reconhecer que, com a aprovação pelo Senado da Medida Provisória 1.076/2021, que garante de forma permanente o valor mínimo de R$ 400 para as famílias beneficiárias, o primeiro ponto é atendido.

O valor adicional totalizará um gasto anual de cerca de R$ 90 bilhões, próximo da estimativa de Naercio Menezes Filho, do Insper, para acabar com a pobreza entre as famílias com crianças de zero a seis anos e erradicar a pobreza extrema nas famílias sem crianças.

O aumento dos recursos nos leva ao segundo ponto de refinamento do Bolsa Família, sobre critérios de distribuição para os beneficiários. Nesse aspecto, os R$400 do Auxílio Brasil não levam em conta a composição familiar, o grau de pobreza da família, nem as diferenças regionais entre beneficiários.

Paradoxalmente, o novo programa de redistribuição de renda é mal distribuído entre seus beneficiários.

O terceiro refinamento foca no desafio histórico de manter os dados das famílias cadastradas atualizados.

Lembremos que o Bolsa Família garantia o efeito de curto prazo de alívio da pobreza e o efeito de longo prazo com as condicionalidades de saúde e educação. O CadÚnico (qualificado pelo Bolsa Família), além de garantir o foco nos mais pobres, permite construir a ponte que, no médio prazo, aumenta a probabilidade de mobilidade social das famílias vulneráveis.

A qualidade do cadastro — pleno e detalhado na sua multidimensionalidade — é essencial para fazer o pêndulo de coordenação da política social, referenciando as famílias para os diversos setores da área social de forma alinhada às suas condições objetivas de vulnerabilidade e sem cair nas armadilhas do assistencialismo desvinculado das evidências.

O Auxílio Brasil, ao que tudo indica, escorrega no assistencialismo e perde virtudes essenciais do Bolsa Família. Dados do Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico (Cecad) mostram que a taxa de atualização do cadastro caiu 22 pontos percentuais entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022.

A não atualização é desastrosa e sinaliza a quebra da função virtuosa do cadastro na coordenação da política social, o desmonte do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) como pilar territorial do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o enfraquecimento do pacto federativo em torno do sistema.

O fim da pobreza não depende apenas dos programas de transferência de renda, mas também de geração de empregos e, em particular, da política de salário mínimo.

Não obstante, o Cadastro Único é peça fundamental neste quadro para efetivar políticas intersetoriais focalizadas no combate à pobreza. Apesar de turbinado em recursos, o Auxílio Brasil tornou-se uma versão mais injusta e ineficiente do Bolsa Família. Nesse sentido, melhor que tenham mudado o nome do programa.

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