O Globo
Programa escorrega no assistencialismo e
perde virtudes essenciais do Bolsa Família. Tornou-se versão mais injusta e
ineficiente
O Brasil enfrenta hoje uma crise social das
mais graves em toda a sua História. Políticas públicas intersetoriais e
focalizadas no combate à pobreza são instrumentos fundamentais para contornar
esse quadro.
O primeiro passo para essa agenda ser
efetiva é um programa de transferência de renda que reduza a pobreza e diminua
sua reprodução intergeracional. Felizmente, já tivemos um programa eficaz: o
Bolsa Família.
Deveríamos aproveitar a experiência
acumulada, corrigir eventuais falhas e avançar para um desenho que atenda aos
desafios atuais. O Programa Auxílio Brasil, no entanto, se mostra um retrocesso
frente ao seu antecessor.
Pedro Ferreira de Souza e coautores, em
artigo publicado pelo Ipea em 2019, concluíram que o Bolsa Família consegue
fazer muito com recursos orçamentários modestos.
Eles apontam que, entre 2001 e 2015, o grande mérito do programa foi justamente a qualidade de sua focalização, para além da sua efetividade na redução da pobreza (15%) e extrema pobreza (25%).
A efetividade do Bolsa Família é
reconhecida internacionalmente. Em 2015, o Fundo Monetário Internacional (FMI)
destacou em relatório sobre a economia brasileira sua contribuição para
“redução da pobreza a um nível histórico”.
Em 2020, a OCDE recomendou, no
documento Economic Surveys: Brazil, sua
ampliação como uma das estratégias para enfrentamento dos efeitos da pandemia.
Não obstante, o programa necessitava de
refinamentos no volume de recursos, na distribuição per capita do benefício e na
atualização das famílias no Cadastro Único (CadÚnico). Será que o Auxílio
Brasil contempla esses aprimoramentos?
É preciso reconhecer que, com a aprovação
pelo Senado da Medida Provisória 1.076/2021, que garante de forma permanente o
valor mínimo de R$ 400 para as famílias beneficiárias, o primeiro ponto é
atendido.
O valor adicional totalizará um gasto anual
de cerca de R$ 90 bilhões, próximo da estimativa de Naercio Menezes Filho, do
Insper, para acabar com a pobreza entre as famílias com crianças de zero a seis
anos e erradicar a pobreza extrema nas famílias sem crianças.
O aumento dos recursos nos leva ao segundo
ponto de refinamento do Bolsa Família, sobre critérios de distribuição para os
beneficiários. Nesse aspecto, os R$400 do Auxílio Brasil não levam em conta a
composição familiar, o grau de pobreza da família, nem as diferenças regionais
entre beneficiários.
Paradoxalmente, o novo programa de
redistribuição de renda é mal distribuído entre seus beneficiários.
O terceiro refinamento foca no desafio
histórico de manter os dados das famílias cadastradas atualizados.
Lembremos que o Bolsa Família garantia o
efeito de curto prazo de alívio da pobreza e o efeito de longo prazo com as
condicionalidades de saúde e educação. O CadÚnico (qualificado pelo Bolsa
Família), além de garantir o foco nos mais pobres, permite construir a ponte
que, no médio prazo, aumenta a probabilidade de mobilidade social das famílias
vulneráveis.
A qualidade do cadastro — pleno e detalhado
na sua multidimensionalidade — é essencial para fazer o pêndulo de coordenação
da política social, referenciando as famílias para os diversos setores da área
social de forma alinhada às suas condições objetivas de vulnerabilidade e sem
cair nas armadilhas do assistencialismo desvinculado das evidências.
O Auxílio Brasil, ao que tudo indica,
escorrega no assistencialismo e perde virtudes essenciais do Bolsa Família.
Dados do Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico (Cecad)
mostram que a taxa de atualização do cadastro caiu 22 pontos percentuais entre
fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022.
A não atualização é desastrosa e sinaliza a
quebra da função virtuosa do cadastro na coordenação da política social, o
desmonte do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) como pilar
territorial do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o enfraquecimento
do pacto federativo em torno do sistema.
O fim da pobreza não depende apenas dos
programas de transferência de renda, mas também de geração de empregos e, em
particular, da política de salário mínimo.
Não obstante, o Cadastro Único é peça fundamental neste quadro para efetivar políticas intersetoriais focalizadas no combate à pobreza. Apesar de turbinado em recursos, o Auxílio Brasil tornou-se uma versão mais injusta e ineficiente do Bolsa Família. Nesse sentido, melhor que tenham mudado o nome do programa.
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