O Estado de S. Paulo
As desistências a que me refiro decorrem em
grande parte de uma causa comum: o ressurgimento do populismo.
Soa estranho dizer que um país possa
desistir de objetivos essenciais, mas isso é o que me parece estar acontecendo
com o Brasil.
Penso que estamos desistindo de ao menos
três objetivos essenciais ao nosso futuro como nação: o da construção de um
sistema político representativo e sólido; o do crescimento econômico e da
promoção do bem-estar; e o de um país ao qual todos tenham orgulho de
pertencer. Nosso consolo é que um país não é uma entidade única, um sujeito
capaz de sentir o que todos sentem e falar por todos. Temos a possibilidade de
identificar, um de cada vez, os agentes que desistem e propagam o sentimento da
desistência. E, então, combatê-los, com argumentos, persistência e civilidade.
É o que precisamos fazer antes que nosso país despenque de vez para o fundo do
poço.
As desistências a que me referi decorrem em
grande parte de uma causa comum: o ressurgimento do populismo, que atualmente
se apresenta como um fator determinante da vida política brasileira.
Nunca é demais lembrar que o golpe de 1964, que nos levou a 21 anos de governo militar, decorreu em grande parte das trapalhadas de dois populistas amadores: Jânio Quadros e João Goulart. Hoje, num cenário econômico muito mais grave, assistimos ao retorno do populismo em dose dupla, corporificado em dois profissionais, Lula e Bolsonaro. Juntos, faz 20 anos que eles vêm transformando o regime democrático numa vil encenação, num escárnio sem tamanho para os contribuintes que padecem sob impostos escorchantes sem uma contrapartida aceitável em serviços.
Jair Bolsonaro dispensa apresentações. É um
populista latino-americano clássico. Não faz segredo de que seu sonho é aliciar
uma parte do Exército e algumas polícias militares para dar um golpe e
desmantelar o que nos resta do regime democrático. O envolvimento do Congresso
Nacional numa série de cínicas agressões à Constituição é uma contrapartida
previsível de tais agressões. Num país sem partidos e sem oposição, é lógico
que o Poder Executivo coopta quantos parlamentares quiser. Mas, até a semana
passada, nada ocorrera de tão esdrúxulo como a votação do auxílio aos segmentos
sociais mais vulneráveis à fome, medida em tese justa, mas perpetrada por meio
de uma cilada que os bolsonaristas armaram para os senadores que integram nossa
esquálida oposição. Cilada justificada com base num “estado de emergência”,
figura que a Constituição desconhece. O timing e a quase unanimidade
(houve apenas um voto contrário no Senado) que se formou para votar a medida, a
cem dias da eleição (repito: cem dias!) dizem tudo. O objetivo da famigerada
sessão do Senado foi meter a mão em R$ 41 bilhões para o aliciamento de votos a
favor do sr. Bolsonaro. Tamanho descalabro colocou a sociedade contra a parede,
na mais completa impotência. Disse tudo o senador José Serra, o único voto
dissidente, ao indagar: “Foi só agora que o Senado descobriu que tem gente
passando fome no Brasil?”.
Lula é diferente. É um populista de última
geração. Aprendeu que a esperteza rende mais que suas escancaradas ameaças às
instituições. Aprimorou aquele pendor teatral que lhe permite dizer a cada
setor exatamente o que ele deseja ouvir. De manhã, da carroceria de um
caminhão, ele diverte a “militância” com sua abundância retórica. À noitinha,
de terno e gravata, trata de assuntos mais sérios com graúdos de vários
matizes. Entrará para a História, creio eu, pelos dois abraços que deu na
Petrobras. Um, simbólico, cercando a estatal de mãos dadas com a militância. Ao
outro abraço, que nada tinha de simbólico, só grandes empreiteiros tiveram
acesso.
Vinte anos atrás, o presidente Fernando
Henrique Cardoso entregou a Lula um país que debelara um processo inflacionário
velho de 33 anos, dera início à reforma do Estado – por exemplo, revolucionando
o setor de comunicações –, concebera programas sérios de atendimento aos
segmentos mais desvalidos da sociedade e restaurara o prestígio internacional
do Brasil. O Ministério da Educação, sob a batuta de Paulo Renato Souza, vejam
só, tratava... de educação!
Decorridos 20 anos, sabemos todos como o
populismo da era Lula-Dilma travou o crescimento econômico. Aí entrou em cena o
sr. Jair Bolsonaro, e os dois criaram esta pororoca estúpida, esta polarização
que põe em risco a própria normalidade do processo sucessório presidencial, transformando-o
num ringue de luta livre, ou em coisa pior, a julgar pela preocupação dos
responsáveis pela segurança dos candidatos.
E, assim, chegamos à terceira desistência.
Vai dia, vem dia, vamos perdendo o orgulho. Que orgulho? Como sustentar o
ânimo, a esperança, a identidade nacional que julgávamos estar construindo, se
os excelentíssimos senhores senadores só agora estão percebendo que incontáveis
famílias se alimentam com sopa de ossos e restos de comida catados no chão?
*Cientista Político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Nenhum comentário:
Postar um comentário