Valor Econômico
O desgaste silencioso do arcabouço fiscal,
que veio de mãos dadas com o ataque à isonomia entre candidatos na eleição,
deveria acender todos os sinais de alerta
A arrecadação de impostos federais seguiu
“bombando” em junho e o time do ministro da Economia, Paulo Guedes, anuncia
nesta sexta-feira novas projeções para receitas e despesas que mostrarão um
quadro bem mais favorável para as contas federais este ano. Tem gente otimista
com a perspectiva de obter saldo primário positivo, algo que não se vê desde
2013. É uma notícia positiva, sim, mas isso não quer dizer que o Brasil não
enfrente outros problemas em relação à gestão do Orçamento.
O saldo anual no azul não deve ser
anunciado esta semana. A expectativa é que isso ocorra mais para o fim do ano,
mantidas as atuais condições de temperatura e pressão.
Há aí pelo menos dois fatos com potencial de animar o debate eleitoral pelo lado do governo: a superação da “herança maldita” de quase uma década de saldos negativos e o fato de o governo de Jair Bolsonaro terminar com um nível de gastos inferior ao de seu início. A projeção atual é terminar o ano com despesas primárias equivalentes a 18,7% do Produto Interno Bruto (PIB), ante 19,5% do PIB em 2019.
Na guerra de narrativas que só deve se
acentuar daqui até o fim do processo eleitoral, o governo tem usado dados como
esses para rebater a acusação de haver elevado o “risco fiscal” com a Emenda à
Constituição (EC) 123, que chama de “das Bondades”, enquanto os críticos a
chamam de “Kamikaze” ou “das Eleições” - o pacote, já aprovado, que eleva o
Auxílio Brasil para R$ 600, aumenta o vale-gás, cria auxílios para
caminhoneiros e taxistas.
Apesar do custo de R$ 41,25 bilhões gerado
pela EC 123, o próprio mercado projeta atualmente um comportamento para as
contas públicas melhor do que o de janeiro de 2021, mostrou o Ministério da
Economia na semana passada. Não se vê, nas estimativas de bancos e corretoras,
um pulo na dívida neste ou nos próximos anos.
Quer dizer que está tudo bem com as contas
públicas? Não, não está.
Há entre especialistas dúvidas se os
recordes de arrecadação vão se manter. Ou sobre como será paga, daqui a algum
tempo, a bolada de precatórios (sentenças judiciais perdidas pela União) que
vem sendo rolada desde o ano passado.
Acima de tudo, há praticamente certeza de
que nem todas as “Bondades” da EC 123 serão extintas na virada do ano, embora
assim esteja previsto. É quase impossível, do ponto de vista político, qualquer
que seja o resultado das urnas. É, possivelmente, mais uma fatura em aberto
para o futuro.
Além dessas incertezas, está em curso um processo
de desgaste do conjunto de regras que modela e dá previsibilidade ao gasto
público federal. Neste mês, a toque de caixa, o Congresso aprovou mudanças que
na prática suspenderam pontos da Lei Eleitoral (9.504/1997) que limita o uso de
verbas públicas para favorecer o grupo que está no poder.
Esses atropelos, diga-se, tiveram voto
favorável de políticos da situação e da oposição.
O principal ataque está na própria EC 123.
Ela criou um estado de emergência para permitir que as “bondades” fossem pagas a
partir de agosto. A emergência é uma das exceções estabelecidas pela Lei
Eleitoral para permitir a distribuição de benefícios subvencionados pelo poder
público em ano eleitoral.
A emergência abriu a porteira. Foi aprovado
um conjunto de alterações na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2022,
ainda a sancionar. Entre elas, a que permite ao governo fazer doações a
entidades públicas e privadas em ano eleitoral.
Em tese, estão criadas condições para
práticas que faziam parte do folclore político, como a distribuição de apenas
um pé de pares de sapatos (o segundo dependeria do resultado das urnas).
Também permite que obras contratadas em
2020 possam ser realizadas em local diferente do originalmente previsto.
Autoriza, além disso, que valores de projetos já iniciados possam ser pagos a
fornecedor diferente do originalmente contratado, mediante condições. São
flexibilidades incomuns no Orçamento federal.
A Lei Eleitoral proíbe que, a partir de 2
de julho em anos de eleição, o governo federal transfira dinheiro novo para
Estados e municípios realizarem obras e serviços, as chamadas transferências
voluntárias. Os pagamentos só são permitidos se houver compromisso preexistente
de pagamento, para obras em andamento e com cronograma estabelecido.
A interpretação no Congresso é que essas
restrições tampouco se aplicam a um tipo de verba controlada por parlamentar:
as chamadas transferências especiais, conhecidas como “Pix Orçamentário”.
Tal como o Pix, essa transferência cai
direto na conta da prefeitura ou Estado indicados pelo deputado ou senador.
Diferente do que ocorre nas tradicionais
emendas de parlamentares ao Orçamento, não é preciso que o dinheiro esteja
vinculado a algum projeto - uma quadra esportiva, por exemplo - aprovado do
ponto de vista técnico pelo ministério setorial. Não é feita a checagem se a
prefeitura está quite na prestação de contas de recursos recebidos
anteriormente, em outros projetos. O município recebe os recursos antes, e não
depois de o agente financeiro, a Caixa, verificar se a obra foi mesmo
realizada.
Este ano, as transferências especiais somam
R$ 3,3 bilhões, ante R$ 621 milhões em 2020. E pouca gente tem dúvida de que o
volume aumentará na peça orçamentária de 2023.
O partido Novo levou a EC 123 a discussão
no Supremo Tribunal Federal (STF). A agremiação vê um precedente perigoso na
criação do estado de emergência. Na sua interpretação, “a Constituição poderia
[e poderá] ser emendada para inserir novos formatos de Estado de Exceção, que
permitem a execução de medidas que afetam direitos individuais”. Além disso,
alega o partido, a EC “atinge diretamente a liberdade do voto.”
O desgaste silencioso do arcabouço fiscal,
que veio de mãos dadas com o ataque à isonomia entre candidatos na eleição,
deveria acender todos os sinais de alerta. Faz parte da família do
enfraquecimento institucional do país, tal como os ataques às urnas eletrônicas
e o processo eleitoral. Nada disso pode ser normalizado.
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